SITUAR PARA (R)EXISTIR: UMA MIRADA SOBRE TEATRO SITUADO: REVISTA DE ARTES CÊNICAS COM OLHOS LATINO-AMERICANOS
30.05.2022
por Patrícia Freitas
Em língua portuguesa, o vocábulo mirar é definido por “fixar os olhos em”, “encarar”, “espreitar”, “tomar como alvo”. Tal verbo de ação-processo tanto em espanhol quanto em português demanda que nos situemos num espaço definido, que saibamos as diferenças e similaridades entre os lugares habitados, seja dentro do que convencionalmente chamamos de estado-nação, das estruturas sociais de uma sociedade erigida pela economia e lógica capitalistas, de uma parcela continental tão múltipla quanto o Cone Sul ou, até mesmo, dentro da categoria problemática de América Latina.
A Teatro Situado: Revista de Artes Escénicas con Ojos Latinoamericanos, com uma ampla equipe de colaboradores residentes na Argentina e Brasil, tem como intuito publicar entrevistas, artigos e trechos de obras dramatúrgicas, ressaltando a costura histórico-geográfica entre elas, bem como as possibilidades ensejadas pelos bens culturais de construir ética e coletivamente espaços de intersecção entre os povos e de debate crítico. Movidos por uma ação-pensamento-ação dialéticos, numa dinâmica que afirma, nega e conserva argumentos e práticas, as publicações reiteram o quanto a contradição entre o específico e o estrutural pode ser produtiva para promover novos caminhos epistemológicos e, consequentemente, políticos sobre a Latinoamérica e a latinoamericanidade.
A perspectiva dos editores e colaboradores da Teatro Situado, pautada pela mirada atenciosa, com o perdão do pleonasmo, dá-se pela verificação de que as experiências sociais, históricas e políticas devem ser primeiro compreendidas através das relações internas que constituem cada espaço social. O objetivo de ampliar o escopo e lidar com a questões concernentes à América Latina como um todo não cai, portanto, na armadilha da homogeneização dos povos ou do apagamento das especificidades locais, mas trabalha a contrapelo de um certo Cone Sul imaginado, exótico, produto de exportação para o Norte global. Se a categoria de América Latina é hegemonicamente usada a partir de uma determinada visão eurocêntrica, progressiva e evolutiva da história, sublinhando os feitos de pretensos vencedores e heróis da Civilização Ocidental, o termo também pode ser lido pelo ângulo da solidariedade latino-americana, da resistência às forças capitalistas e da potencialização da luta de classes num espaço onde os efeitos desastrosos da desigualdade social são nada menos do que obscenos.
Tendo como base de reflexão a crítica materialista dialética, o trabalho da Teatro Situado desvela como as camadas históricas latino-americanas, embebidas em situações de opressão social, guerras geopolíticas, lutas por pertencimento e insurgências populares podem servir de estímulo para tomarmos a própria categoria de “América Latina” como um campo progressista, no qual sublinham-se processos ainda ativos a favor da emancipação daqueles povos usurpados de seus direitos mais fundamentais.
Nessa esteira, o olhar atento à porosidade dos bens culturais e artísticos em relação aos contextos de produção é basilar, pois é ele que dá ensejo à reflexão crítica da nossa realidade e das ideologias dominantes. Se a arte, de acordo com Terry Eagleton, é capaz de “tornar concretas as forças histórico-universais de uma época, que formam a base para a mudança e o crescimento, revelando seu potencial de desenvolvimento em seu mais alto grau de complexidade” (2011, p. 58), podemos considerá-la um potente instrumento para tanto para o diagnóstico dos problemas que assolam a América Latina quanto para pensarmos caminhos em direção a um futuro mais justo e equitativo.
As dificuldades e as limitações de tamanho empreendimento impõem uma prática processual, ensaística, consciente de que cada passo representa um significativo avanço e movida pelo desejo e persistência coletivos: Teatro Situado. Revista de Artes Cênicas com olhos latino-americanos, é um espaço para compartilhar experiências. Um espaço para debater ideias, para fazer propostas, para nos encontrar. Um espaço para tornar visível a realidade (os modos, os momentos, as intenções) de nossa atividade artística: uma revista. Uma revista? Sim, uma revista. Um dispositivo que contenha a diversidade de práticas, enfoques e experiências que habitam nosso continente. Que permita explorá-los, aprender com eles. Porque nossas realidades são diferentes, assim como são distintos nossos objetivos imediatos e, seguramente, os caminhos para alcançá-los. Mas há uma identidade que nos convoca, que nos define. Que nos multiplica. Uma identidade que surge da prática artística. Que coincide em um modo de ver o mundo. (GRINSPAN et al., 2020, p. 8)
Pode-se arriscar dizer que a Revista almeja ser dispositivo que pensa e faz pensar a cultura como uma prática democrática, ao alcance de todos e a serviço da reflexão. A cena é destituída de seu pretenso caráter sagrado, hierárquico e coercitivo reivindicado pelos defensores do panteão artístico. Também se destitui das obras certa aura aristocrática, desinteressada e metafísica, cultuada por uma parcela da crítica mais conservadora. Para a equipe da Teatro Situado, o teatro existe porque cumpre uma importante função social e aí se dá seu desenvolvimento na história. Em vista disso, cumpre a nós, colaboradores e editores da revista, refletirmos sobre os modos pelos quais os bens simbólicos são produzidos, em quais espaços eles circulam e quem detém os meios de produção.
Não à toa, a revista possui periodicidade semestral e distribuição gratuita pelas plataformas online da argentina Hasta Trilce e do Instituto Augusto Boal, sem qualquer objetivo lucrativo. Seu conteúdo é disponibilizado integralmente nos idiomas português e espanhol, com vistas a garantir o amplo acesso a múltiplas formas de manifestação crítica, sejam entrevistas, recortes dramatúrgicos e ensaios assinados por pensadores e artistas do meio teatral.
Os números publicados – até agora foram quatro – destinam-se a preencher uma lacuna dos estudos sobre teatro na América Latina através de uma perspectiva bastante clara: de que a cultura pode servir como um dos eixos norteadores para a crítica social. É nesse caminho que a revista trabalha, apoiada pelo Instituto Augusto Boal e pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e encabeçada por um comitê editorial transnacional que encampa três organizadoras incansáveis, a saber: a brasileira Mariana Mayor e as argentinas Julieta Grinspan e Mariana Szretter. Ao funcionar como uma espécie de motor analítico, a publicação possui como principal alicerce o ato de situar histórica e geograficamente o trabalho cultural, reconhecendo-se como um espaço aberto para fomentar questionamentos, inquietações e debates sobre as diferentes e injustas realidades sociais latino-americanas no contexto atual. Sua proposta, a um só tempo, nos situa e nos faz mirar o mundo e a nós mesmos como latino-americanos, isto é, como parte de uma identidade complexa, em construção e que ainda peleja em busca de solidariedade e irmandade.