Augusto Boal

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Fake news e perseguições políticas em tempos democráticos

22.05.2019

por Fabiana Comparato

 

“Se, de um lado, é verdade que quem não deve não teme, por outro lado, uma mentira de tanto ser repetida pode passar a ganhar ares de “verdade”.”

Vivemos no Brasil, mais escancaradamente desde a corrida presidencial que culminou nas eleições de 2018, uma realidade que cada vez mais se assemelha a uma narrativa ficcional. E não apenas no que tange seu desenrolar quase que incongruente, e de aparente imprevisibilidade, mas pela intensa e indiscriminada manipulação de notícias e fatos, mascarada por um discurso equivocado de transparência.

Em épocas em que as fakes news se alastram como um vírus, rápido e eficaz, com poucas chances de ser contido na fonte, aos alvos dos ataques resta apenas o contra-ataque. Mas apesar da velocidade que as redes de comunicação de hoje conferem a essas epidemias de narrativas falsas, elas não são uma novidade.

Notícias difamatórias sempre existiram como forma de manobra política, e também atingiram Augusto Boal, no que só pode ser entendido como uma campanha de calúnias contra seu mandato de Vereador da cidade do Rio de Janeiro, no ano de 1993.

De volta ao Brasil em 1986, após 17 anos de exílio e de ter sofrido aberta perseguição política, ter sido preso e torturado – por exercer seu direito democrático de liberdade de expressão – Boal permaneceu explorando os limites de sua pesquisa teatral como uma prática política e cidadã. E em 1992 lançou-se em mais um desafio – uma campanha para vereador do Rio de Janeiro pelo Partido dos Trabalhadores com a criação do que seria um novo tipo de relação entre o legislador e o cidadão – o Teatro Legislativo. Em suas próprias palavras “uma forma de fazer teatro como política e não apenas o antigo teatro político“. Uma prática capaz de produzir “intervenções políticas, legislativas, jurídicas a partir de uma consciência despertada pelas várias formas do Teatro do Oprimido.” Como  Boal explicou à época numa entrevista à Folha de São Paulo: “Em vez de eu ficar trancado em meu gabinete, a população me diz quais leis devo fazer. Uso o teatro como mediação”.

O mandato político teatral de Augusto Boal (início de 1993 ao final de 1996) conseguiu de fato colocar essa ideia em prática, estimulando o exercício pleno da cidadania e da democratização do processo legislativo. Mas mesmo naquele momento, que pode ser compreendido como um de reconstrução democrática, Boal encontrou-se de novo alvo de perseguições, que não por acaso, vieram à tona 1 ano antes das importantes eleições presidenciais de 1994.

Assim como vemos acontecer hoje, em 2019, com uma deputada da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro, que tem de defender seu mandato de um processo de cassação exatamente por zelar pelos direitos humanos da população do estado que a elegeu representante. Boal também sofreu ataques ao seu mandato, em última instância, por representar um projeto político de país mais à esquerda, e teve que responder a acusações que escondiam outras motivações que não as caluniosas que funcionaram como pretexto.

Aproximadamente 10 meses após o início do seu mandato pelo PT (em Outubro de 1993), Boal foi processado por ter supostamente firmado contrato ilícito com a Secretaria de Cultura do município, em benefício próprio, numa campanha endossada pela imprensa, que noticiou com alarde fatos não comprovados e mentirosos. Tamanha foi a enxurrada de fake news propagada por um veículo da imprensa, que Boal se viu obrigado a sair em defesa própria, não só na arena da Câmara de Vereadores, mas publicamente em resposta ao jornal em questão. 

Desde o dia 04.10.93, o jornal “O Dia” vem desenvolvendo uma campanha difamatória contra o vereador Augusto Boal PT/RJ.

 Se, de um lado, é verdade que quem não deve não teme, por outro lado, uma mentira de tanto ser repetida pode passar a ganhar ares de “verdade”.

(…)

O jornal revelou sua má fé ao publicar o suposto escândalo sem ouvir o Vereador Augusto Boal e a Secretária de Cultura Helena Severo, que não tiveram uma linha sequer, na matéria de página inteira, para apresentar a sua visão do assunto.

(…)

Outras tantas mentiras foram levantadas pelo jornal “O Dia”. Consideramos relevante responder a estas, com intuito de mostrar que o jornal “O Dia” não está fazendo jornalismo. Estamos diante de um fato político. O jornal vem se utilizando da notoriedade de Augusto Boal para atingir setores comprometidos com a construção de um país justo e democrático.

Ao tentar manchar a imagem de integridade do PT, “O Dia” objetiva conter a ascensão da campanha Lula. Esse tipo de denuncia cala fundo na opinião pública e na militância que é nossa principal arma. Companheiros, este será um expediente bastante utilizado durante a campanha presidencial e precisamos desde já dar respostas rápidas e contundentes. Não podemos nos deixar enganar por uma imprensa que não está do nosso lado.”      

(Trechos da carta-resposta oficial do Mandato político teatral Augusto Boal PT/RJ aos leitores do jornal O Dia, do dia 21 de Outubro de 1993)

Boal, que contou com o apoio de inúmeros intelectuais, artistas, religiosos, entidades e comunidades do Brasil e do mundo, teve sua inocência justamente comprovada e seu mandato continuado até o fim. Mandato este que resultou extremamente potente e democrático, rendendo a aprovação de 14 projetos de lei através da aplicação das práticas do Teatro Legislativo (entre eles a primeira lei brasileira de proteção a testemunhas), e durante o qual Boal atuou como presidente da Comissão de Direitos Humanos.

Mas a conjuntura permanece de tal forma que as mesmas motivações que levaram às perseguições contra Boal são as que hoje ainda procuram prejudicar mandatos, políticos e militantes de esquerda, que defendem um projeto de país mais democrático, justo e igualitário. Episódios, infelizmente recorrentes, que nos levam a refletir ainda mais sobre os conteúdos a que somos expostos hoje em dia, seja pelas redes sociais ou canais de imprensa. Afinal, notícias são também poderosas armas políticas, mesmo quando disfarçadas de meros “fatos”.

 O Texto e o Pretexto (PDF) foi escrito por Boal em sua própria defesa, divulgado na época do processo, em 1993.