O grande Boal, por Maria Rita Kehl
13.05.2019
Fui uma adolescente bastante alienada. Sabia que havia uma ditadura,
mas minha família melhorou de vida durante o “milagre brasileiro” dos
anos 70. Até entrar na universidade, ignorava a tortura, os assassinatos
nas prisões, o desaparecimento de corpos. Só na USP meus colegas me
alertaram para o que acontecia no país. Virei de esquerda. Ainda sou.
Enquanto isso, aquele que viria a ser meu amigo quatro décadas depois,
foi preso e torturado por seu trabalho revolucionário com o “Teatro do
Oprimido” – uma invenção de Augusto Boal para conscientizar as pessoas
a respeito de todas as formas invisíveis de opressão que sofriam.
Conheci Boal através de sua amada mulher, Cecília, integrante de um
grupo de estudos que coordenei, no Rio, entre 1998 e 2011. Cecília me
hospedava em sua casa, mas no começo ele nem me dava bola. Era
educado, gentil, mas passava quase todo o tempo escrevendo, no
escritório envidraçado que eu chamava de “aquário”. Uma vez, Cecília foi
com ele a uma mesa redonda da qual participei, sobre Sociedade do
Espetáculo. Sua intervenção foi uma aula para nós, expositores. E depois
disso ele passou a me considerar como interlocutora.
Tive a alegria (e hoje penso: a honra) de participar de alguns momentos
importantes da vida desse casal; estava no Rio na comemoração do dia em
que Augusto perfilhou Fabián, filho do primeiro casamento da Cecília,
depois da morte do pai dele. E de novo, no dia em que fui assistir a uma
aula dele, na UFRJ. Como era claro no que ensinava; como era
entusiasmado! Fui também uma orgulhosa integrante do desfile de uma
pequena Escola de Samba da Barra Rio das Pedras que o homenageou, em
2003. Naquela altura, Augusto já sofria com um joelho arruinado na
tortura, mas subiu no carro alegórico e se aguentou lá em cima, apoiado
em uma muleta.
Em 2006, me pediu que fizesse o prefácio de seu livro – que seria o último,
mas não sabíamos disso… Com alguma timidez, anotei passagens que
achei que deveriam mudar, palavras a corrigir, etc. Fui falar com ele,
preocupada com a reação. Nada disso: Augusto respeitava todo mundo
(menos, provavelmente, torturadores e seus mandantes…). Ouviu minhas
ponderações, aceitou muitas delas, mexeu no livro.
Pouco depois, em 2009, Augusto morreu. Não era hora. Nunca é hora –
mas no caso dele, menos ainda. O Brasil ainda precisaria tanto do Boal!
Hoje, mais ainda – mas também penso que foi uma sorte ele não ter
passado pela tristeza de ver seu país eleger Bolsonaro.
Hoje temos o Instituto Boal, temos a grande Cecília, temos Julián Boal que
leva adiante o trabalho do pai. Mas só de escrever sobre a falta que ele faz
– para nós que o amávamos, para o Brasil que piorou tanto – sinto
vontade de chorar.
Maria Rita Kehl
Maria Rita é psicanalista e vice presidente do Instituto Augusto Boal