Augusto Boal

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Um encontro com Augusto Boal em Londres

11.02.2019

Compartilhamos com vocês o artigo “Um encontro com Augusto Boal em Londres”, da pesquisadora Dra. Marina Henriques Coutinho.

 

Have a courage to be happy (Tenha coragem para ser feliz) diz a citação de Boal pintada na parede de entrada da sede da Companhia de Teatro Cardboard Citizens (Cidadãos de Papelão), em Londres. As palavras de Boal me fizeram lembrar do Brasil que havia deixado há algumas semanas, dos eventos que vivemos nos últimos anos e do resultado lastimável das eleições presidenciais em 2018. As lembranças chegavam com tristeza mas Boal, como sempre, convocava à luta. Sua frase serviu como ótima anfitriã naquela fria tarde inglesa. Abri a porta, curiosa sobre o que encontraria lá dentro.

A Cardboard Citizens é uma companhia de teatro reconhecida no Reino Unido pelo seu trabalho com homeless people [1] (pessoas sem abrigo). A trajetória do grupo teve início em 1991, a partir do encontro de Adrian Jackson (fundador e diretor artístico da Companhia) com comunidades de desabrigados que frequentavam a região chamada Cardboard City, próxima à Waterloo Station, em Londres. Naquele momento, o Reino Unido ainda sentia os efeitos das políticas do governo Margaret Thatcher que, entre outras consequências, havia gerado desemprego e contribuído para o aumento do número de pessoas morando nas ruas.

Em recente publicação, que comemora os vinte e cinco anos da companhia, Jackson conta como a conjuntura daquela época somada ao encontro fundamental com Augusto Boal foram determinantes para o surgimento do Cardboard Citizens. O primeiro contato de Adrian Jackson com a obra de Boal havia ocorrido em 1976, quando adquiriu o livro O Teatro do Oprimido. Mais tarde, ao final da década de 1980, conheceu Boal pessoalmente e o convidou para oferecer workshops para o grupo no qual trabalhava naquele momento – London Bubble.[2] A relação profissional e de amizade entre os dois se aprofundou ao longo dos anos, tendo resultado em inúmeras colaborações em trabalhos práticos e também na tradução de cinco livros de Boal para o inglês, feitas por Jackson.

As experiências dos workshops na Augusto Boal Residency (Residência Augusto Boal), realizada em novembro de 1990, encorajaram Jackson e seus companheiros artistas do London Bubble a experimentar as técnicas do Teatro Fórum com grupos de homelessness. Segundo ele, o primeiro desafio foi encontrar pessoas interessadas em participar: “Nós prendemos cartazes em centros de assistência[3] pela cidade, avisando sobre os workshops”[4]. Os cartazes diziam: “Sem teto? Alguma coisa para dizer sobre isso? Diga no teatro do London Bubble!”

A proposta de fazer teatro com aquelas pessoas soava muito diferente na época: afinal, de que maneira o teatro poderia ajudar desabrigados? Todavia, algumas organizações e centros embarcaram na ideia e, com isso, surgiu o embrião do que se tornaria mais tarde o Cardboard Citizens.

O convite feito nos cartazes surtiu efeito. Reuniram um primeiro grupo, bastante heterogêneo, que incluía moradores de rua, usuários de drogas, mulheres trans, migrantes etc. A partir do trabalho com o compartilhamento de histórias e improvisação foram criadas situações de Teatro Fórum para serem levadas a diversos espaços da cidade, entre eles, uma passagem subterrânea em Waterloo chamada Bullring. Neste local morava uma comunidade com cerca de 200 pessoas vivendo em abrigos precários de papelão e, por este motivo, a companhia que seria formada mais adiante foi batizada por um de seus membros como “Cidadãos de Papelão”.

De acordo com Jackson, a performance daquela noite reforçou para o grupo a compreensão de que “não era para nós impormos quaisquer soluções para as nossas plateias, elas sabiam o que era melhor para elas”.[5] O evento memorável rendeu mais participantes para o coletivo então formado, que passou a se encontrar com regularidade. O caminho trilhado pelo Cardboard Citizens dali em diante é muito bem contado, a partir de textos, fotos e documentos reunidos no livro que registra os seus vinte e cinco anos de atividades.

A Companhia hoje é reconhecida dentro e fora do Reino Unido por desenvolver uma abordagem de prática teatral fortemente influenciada pelo Teatro do Oprimido, com o objetivo de empoderar politicamente esses grupos sociais, contribuindo para que suas vozes sejam ouvidas. O Cardboard Citizens desenvolve atualmente um leque variado de atividades com capacidade para atingir cerca de mil e quinhentas pessoas por ano. São excursões nacionais e produções teatrais baseadas em Londres, apresentações em palcos, nas ruas, albergues ou prisões, residências em diversas cidades do Reino Unido, workshops, formação para organizações e indivíduos a nível nacional e internacional. Também são prestados serviços de apoio e aconselhamento aos seus membros, na sede da Companhia, na região do East London.

Às frases de Boal na entrada da casa, que tanto me impactou, juntou-se o desenho da árvore do Teatro do Oprimido estampadas em suas paredes brancas. Fui recebida pelo próprio Adrian Jackson que, ao longo do passeio pelas salas, explicou que o espaço foi pensado para servir como um local de acolhimento para todos os membros do grupo; um lugar para não apenas se fazer teatro mas, também, para se encontrar o apoio e a orientação necessários em caso de situações mais difíceis. Nele existem salas de trabalho administrativo, sala para conversas individuais, uma ampla e equipada sala de ensaios, cozinha e banheiros.

Entre as atividades ofertadas naquele momento, muitos workshops gratuitos. Um deles convidava os “membros”, como são chamados os participantes do grupo, a criarem performances com o tema “histórias não contadas”; outro, chamado Act Now (Aja agora), incentivava a participação de jovens entre 16 e 25 anos que estão fora da escola e do mercado de trabalho; havia ainda a chamada para o Arts for social change meeting (Arte para a mudança social), convidando ativistas e artistas a trabalharem juntos nas cidades de Manchester e Bristol.

Naquela tarde, Jackson trabalhava com um grupo em uma sessão de Teatro Jornal. O processo havia começado no dia anterior e iria culminar com a apresentação de cenas criadas a partir de notícias dos principais jornais selecionadas pelos Cardboard Citizens. Uma delas reportava o acidente de trânsito provocado pelo Príncipe Phillip, Duke de Edimburgo, marido da Rainha. O episódio rendeu inúmeras reportagens em todos os veículos de comunicação do Reino Unido. O príncipe havia saído ileso do acidente, mas uma mulher que estava no carro atingido pelo Land Rover da realeza se feriu. Durante vários dias a imprensa se dedicou a uma cobertura intensa do fato. Quem havia sido responsável pelo acidente? Como aconteceu, exatamente? O príncipe usava cinto de segurança? Quem foram as testemunhas? Será que um senhor de 97 anos deveria continuar dirigindo? etc.

Alguns veículos de comunicação trataram de proteger o príncipe, outros o acusaram de imprudência e defendiam a suspensão de sua habilitação. A notícia foi um prato cheio para uma das cenas criadas pelo grupo. Nela, a mulher que havia se ferido no acidente reclamava que ainda não havia recebido um sincero pedido de desculpas assinado pelo príncipe; recebera, apenas, uma mensagem gravada por uma das secretárias da rainha. A mensagem lida em cena por uma participante do grupo deu o tom da ironia dos Cardboard Citizens acerca do episódio.

Em outro momento, os integrantes do grupo satirizavam uma notícia sobre o design luxuoso de um tipo de guarda-roupa. Os Cardboard Citizens reproduziam em cena as falas das mulheres ricas elogiando o tal móvel e a cada frase que soltavam a situação ficava ainda mais engraçada. O último Cardboard Citizen a entrar em cena fingindo ser uma das donas do tal armário foi Richard, um homem negro, veterano do grupo. A imagem era pura contradição: um grupo de desabrigadosrepresentando as fúteis personagens que tiveram espaço naquela notícia de jornal.

Enquanto a plateia ainda ria, acontecia um corte na cena para nos lembrar a informação de que o número de desabrigados no Reino Unido continua crescendo e de que em 2018, trezentas e vinte mil pessoas foram registradas como em tal condição[6]. A presença física dos Cardboard Citizens nas cenas em contraste com as notícias, que mais pareciam narrativas de ficção, provocavam na plateia o riso mas, ao mesmo tempo, um choque de realidade – o desconforto diante da crítica que se fazia sobre as desigualdades presentes naquela sociedade.

Como dizia Boal, um jornal é uma obra de ficção. De fato, o que dizer sobre aquelas notícias que mais pareciam fazer parte de um universo paralelo? O que fazer com elas senão o que fizeram os Cardboard Citizens? Usá-las para desvelar o que quase sempre preferem esconder.

Senti que havia passado aquela tarde em companhia também de Boal. Não foi a primeira vez que visitei a Inglaterra e o encontrei. Quando aqui estive em 2008 para cursar parte do meu doutorado, constatei a grande influência de sua obra em estudos direcionados à análise de práticas teatrais realizadas com grupos de não atores, em contextos diversos, reforçando a ideia de que “todos podem fazer teatro.” Lembrei-me novamente do Brasil e pensei o quanto agora, e talvez mais do que nunca, a presença de Augusto Boal se faz necessária.

Já ia saindo da casa dos Cardboard Citizens quando olhei mais uma vez o escrito na parede:

 

Theatre shall never end (O teatro nunca vai acabar), Augusto Boal.

 

 

[1]A condição de vida dessas pessoas varia. Podem ser pessoas que estejam efetivamente morando na ruas ou então que possuam residência em abrigos administrados por organizações comunitárias ou por departamentos ou agências governamentais. Esses programas são apoiados pelo governo, instituições de caridade, igrejas e doadores individuais. Essas pessoas têm dificuldade de adquirir e manter residências regulares, seguras e adequadas devido à falta ou instabilidade de uma renda. Alguns dos homelessness ou desabrigados apresentam condições adicionais, como problemas de saúde física ou mental ou vícios, o que torna a solução para a falta de moradia ainda mais difícil.

[2]Fundada em 1972, a Companhia London Bubble é até hoje, assim como o Cardboard Citizens, uma das mais conhecidas na Inglaterra pelo trabalho teatral com não atores.

[3]Day centres traduzido para centro de assistência:  lugar que oferece apoio, cuidado e lazer para pessoas que estão em situação de vulnerabilidade social.

[4]Cardboard Citizens 25 Years, Katrina Duncan e Adrian Jackson, p. 8, 2018.

[5] Idem, p. 11.

[6] At least ‘320,000 people homeless in Britain’ (18/11/2018) Disponível em: https://www.bbc.co.uk/news/education-46289259