Classe Magistral, versão em português
07.01.2012
Continuando a nossa política de boa vizinhança traduzimos para o português a classe ministrada por Boal em espanhol. A tradução é da nossa amiga Márcia Fiani
Quero agradecer muito especialmente a Carlos Fos, diretor do Centro de Investigaciones Teatrales , por ter me cedido este texto
Apresentação
Como parte das Atividades Especiais propostas pelo III Festival Internacional de Buenos Aires, realizou-se, de 22 a 27 de setembro de 2001, o ciclo « Classes Magistrais de Teatro Contemporâneo ». Oito artistas relevantes na cena atual africana, européia e americana – Augusto Boal, Frank Castorf, Philip Glass, Sotigui Kouyaté, Alain Platel, José Sanchis Sinisterra, Robert Wilson, Martin Wuttke – ofereceram, cada um deles, uma conferência sobre um tema de sua especialidade. As oito classes magistrais se ministraram na Sala Casacuberta do Teatro San Martín. Dois oito convidados, apenas Wuttke não pode viajar ao Festival, mas esteve presente por meio de uma videoconferência.
As oito classes foram, oportunamente, gravadas a fim de integrar o Arquivo do Festival e, após um processo de edição literária sob nossa coordenação, encontram-se agora reunidas no presente volume – publicado em coedição com Atuel – podendo também ser consultadas na página web www.festivaldeteatroba.com.ar
Procurando respeitar as versões originais, reduzimos os textos a seus núcleos mais relevantes, assim como cortamos certas marcas de oralidade que poderiam dificultar uma leitura ex visu. Expressamos aqui nosso agradecimento aos tradutores responsáveis pelas versões simultâneas durante as classes, integrantes da equipe dirigida por Silvia Fehrmann. O trabalho de todos eles se revelou uma referência valiosa – especialmente no caso de Castorf e de Wuttke – para a elaboração das traduções que aqui publicamos. Agradecemos igualmente aos companheiros do Taller de Traductores de Teatro (Oficina de Tradutores de Teatro), que forma parte do Centro de Investigación en Historia y Teoria Teatral (CIHTT) (Centro de Investigação em História e Teoria Teatral), que, seguindo nossa orientação, traduziram e se ocuparam da edição dos textos: María Victoria Eandi, Gabriel Fernández Chapo, Silvana Hernández e Nora Lía Sormani.
Esperamos que em seu novo suporte, sobre papel, ou em suporte virtual, as classes preservem algo de sua intensidade e de seu entusiasmo convivial. Bem que estas páginas não possam registrar nem os aplausos, nem os risos, e nem – salvo exceções – as intervenções do público assistente, restam deles alguns ecos entremeados com as palavras dos mestres. Finalmente, desejamos que o livro e a rede possam servir à difusão do pensamento diverso dos oito grandes criadores convocados.
Jorge Dubatti
Augusto Boal , Teatro do Oprimido: métodos e técnicas
Augusto Boal
Diretor, dramaturgo, teórico e pedagogo teatral, Augusto Boal (1933) dirigiu o Teatro de Arena de São Paulo de 1956 a 1971, ano em que foi preso e torturado. Já no exílio, difundiu seu método do Teatro do Oprimido pelo mundo, especialmente em países da América Latina. Publicou mais de vinte livros, traduzidos para vinte e cinco idiomas, entre os quais “Teatro do Oprimido e outras poéticas políticas”. É atualmente diretor artístico do CTO-Rio (Brasil). (*)
Vou me referir a uma experiência que, em parte, teve início nesta cidade de Buenos Aires, no Brasil, em Lima (Peru) e em outros países latino-americanos. Curiosamente, hoje em dia este método se pratica em mais de setenta países do mundo, na África, Europa, Ásia e Oceania; e, no entanto, quase não se vê na atualidade daqui, da América Latina. Que eu saiba, na Argentina, por exemplo, muito pouca gente utiliza o Método do Teatro do Oprimido.
O que é o Teatro do Oprimido e por que encontrou essa importância em todo o mundo? Por que existem tantos livros publicados, em inglês, francês, em alemão, em todos os idiomas? Por que se escreve tanto sobre o Teatro do Oprimido, e na América Latina não se conhece quase nada e muito pouco se faz?
Eu sou originário do Brasil onde, por muito tempo, dirigi um teatro. Era o diretor artístico do Teatro de Arena de São Paulo; mas “arena”, em português, tinha o significado de “lugar em que se luta”, arena de touros, dos lutadores. Esse significado de “arena” é o que seria para nós o teatro, pela luta e pelo circular; por esse duplo sentido. Nesse teatro trabalhei, faz muitíssimo tempo. Comecei com o teatro profissional faz quase meio século, quarenta e cinco anos, e estava com um grupo muito grande de gente entre os vinte e os vinte e cinco anos. Era um grupo que tinha muita força e preocupação política. Estávamos começando uma carreira no teatro mas, ao mesmo tempo, nossa preocupação política era importante.
Queríamos fazer um teatro que tivesse sentido no Brasil, um teatro que significasse algo para o público. Não estávamos pensando em fazer meu teatro, “tenho vontade de fazer tal ou tal coisa”, pensávamos sim no nosso público, em levar em consideração isso que se chamava “o povo”. E o que era o povo? Era uma entidade um pouco abstrata, mas queríamos falar com essa entidade; procurávamos o povo e pensávamos no que faríamos para o povo, no que lhe daríamos.
Nessa época – estou falando dos anos 50 e começo dos 60 – havia no mundo um movimento que se chamava Teatro Político, mas que tinha uma falha, um erro básico, que consistia no fato de que o artista tinha que ser o mestre ensinando ao público algo que esse desconhecia. Falava-se muito em teatro didático, teatro com mensagem, a idéia sendo a de que nós, os artistas, embora tão jovens, seríamos os portadores da mensagem. Essa mensagem era às vezes ditada por um partido, uma organização política, uma organização anarquista, etc.; havia no mundo esse movimento: fazer teatro político.
Nós estávamos começando e pensávamos que o que queríamos fazer era um teatro que fosse político mas no sentido de ajudar, de conscientizar as massas, queríamos fazer um teatro que fosse importante para as pessoas que sofriam no Brasil, para os oprimidos. Nos propusemos, então, a trabalhar com os oprimidos e tivemos que nos perguntar quem são os oprimidos no Brasil.
Em primeiro lugar, existe oprimidos do tipo dos negros. As pessoas dizem que não existe preconceito racial no Brasil, o que é uma grande mentira. Por exemplo, se vocês pensarem nos ministros do Governo, não encontrarão negros. O caso de Pelé não vale, porque estava no cargo não por ser negro, mas apesar de ser negro. Isso nos dá uma indicação de que não há negros decidindo assuntos governamentais no Brasil; existem, sim, preconceitos. Há leis contra o racismo; se não houvesse racismo, qual a razão de haver leis tratando do racismo? Evidentemente, se existem leis é porque o racismo existe.
Nós nos dizíamos então que tínhamos que fazer obras contra o racismo, em favor dos negros. E nos propúnhamos a dizer aos negros: “Nós, os artistas, que somos mestres, porta-vozes de uma mensagem, viemos lhes dizer o que devem fazer para lutar contra o racismo brasileiro”. Mas todos nós éramos brancos. E assim mesmo dizíamos aos espectadores: “Façam isso, lutem dessa forma” e nós, brancos, ensinando aos negros o que deveriam fazer. O que nos salvava é que tínhamos as melhores intenções do mundo, que tínhamos um objetivo.
Que outro grupo social era oprimido no Brasil? As mulheres. Viajo como louco, vou a todos os lados, e nunca vi um país onde as mulheres não sejam oprimidas. Vou contar-lhes uma história muito curiosa: a única vez em que me pareceu estar em um país onde não se falava de opressão feminina foi numa estada na Suécia. Estava trabalhando, montando um espetáculo. Costumo fazer espetáculos onde incluo o público, montando cenas. Então perguntei: “Qual o tema que lhes interessa? Vamos preparar, diante de todos, uma obra que fale dos oprimidos daqui”. Uma mulher se referiu então à opressão da mulher. Isso me pareceu natural, pois em qualquer cidade do mundo sempre ouço alguém falar do problema da mulher oprimida. Mas outra mulher se levantou, e disse: “Não, por que vamos tratar de opressão da mulher, aqui as mulheres não são oprimidas.” Sinceramente, fiquei bem contente, porque pela primeira vez iria conhecer um país que eu poderia recomendar às mulheres: “Mudem-se todas para lá, vão ficar contentes, é verdade que faltarão alguns homens no caso de irem todas para lá, mas é bom ter um país onde não serão oprimidas.” Fiquei feliz, mas quis me certificar, quis ter certeza de que aquilo era verdade. Então, perguntei: “Você está segura de que na Suécia as mulheres não são oprimidas?” Ela disse: “Aqui somos todos iguais, homens e mulheres, não existe nenhuma diferença”, e acrescentou que “na França as mulheres se dizem liberais e são oprimidas, no Brasil os homens são todos machistas, mas aqui na Suécia não somos oprimidas.”
Então eu disse: “É verdade que no Brasil são oprimidas, que na França também são oprimidas, porque as mulheres sempre ganham menos do que os homens, ainda que fazendo o mesmo trabalho.” E tornei a perguntar: “Aqui não? Aqui as mulheres são realmente iguais aos homens, ganham o mesmo salário que um homem pelo mesmo número de horas trabalhadas?” Naquele momento, a mulher me olhou e disse que “na verdade, não é tanto assim.” Perguntei qual a diferença, e ela respondeu que “na França ou no Brasil as mulheres ganham menos que os homens por um mesmo trabalho feito, enquanto que aqui são os homens que ganham um pouco mais do que nós”. Nesse momento, eu pude lhe mostrar que sua opressão já estava na sua cabeça, que ela não via a opressão, mas que a opressão existia.
Esse fato acontece com todos nós (homens, mulheres, brancos, negros), em relação à maioria das opressões de que somos vítimas, porque nos acostumamos a elas e elas nos parecem naturais. É natural que um país condene uma pessoa sem provas; é natural que se invada um país e que massacrem seu povo; é natural porque aceitamos que as coisas se passem assim. Mas eu não sou a favor dessas situações, e por isso, voltando atrás, aos anos ’56, ’57, ’58, representávamos obras em favor das mulheres.
Escrevi muitas obras feministas, ensinando às mulheres o que deveriam fazer para se liberarem da opressão de homens como eu, que escrevia as obras. Evidentemente, eu não ensinava tudo o que eu sabia, ensinava em parte como deveriam se liberar, mas sempre escondia alguma coisa, para não perder, eu mesmo, o meu poder. E isso é normal, porque uma pessoa não sabe o que a outra sofre se ela mesma não sofre a mesma opressão. Ainda que eu tenha a maior admiração pela mulher, eu não sou mulher. Sendo um homem, eu não tenho como sentir de que forma escuta, pensa e sente uma pessoa tão diferente de mim.
Visto assim, é muito difícil entender verdadeiramente a um negro, uma mulher, um camponês. Hoje trabalho muito com os movimentos dos camponeses sem terra no Brasil. Só que hoje eu não faço mais teatro de mensagem, faço Teatro do Oprimido, e são eles os que dizem o que querem fazer, eu apenas os ajudo a fazer teatro. E eles fazem, e adotaram o Teatro do Oprimido como sua linguagem de comunicação normal no Brasil.
O Brasil tem oito milhões e meio de quilômetros quadrados, é um país enorme – o quinto do mundo em extensão de terras -, porém dois por cento da população possui oitenta por cento da terra. Este sempre foi um dos grandes problemas do Brasil.
Da mesma forma que a Argentina, o meu país é escravo, e essa escravidão se deve sobretudo a dois problemas: um é a terra, propriedade de pouca gente; o outro (como no caso de vocês) é a dívida externa, vínculo da moderna escravidão. A escravidão do século XIX não serve mais, agora a escravidão é mais higiênica, invisível; as coisas acontecem mas a gente já não se dá conta delas, e de repente recebe um salário menor do que o merecido, ou não tem aquele emprego que tanto faz falta, ou não tem facilidade de acesso ao que quer que seja.
A escravidão de hoje é mais espraiada, não é apenas pela cor da pele, e é tão cruel como a outra. Por isso, para escapar a essa escravidão, ensinávamos aos camponeses o que fazer. Mas um dia aconteceu uma coisa que mudou minha vida, minha perspectiva sobre o teatro político. Havíamos preparado uma obra muito linda sobre a luta dos camponeses pela terra, que mostrava a situação real do Brasil, o que havia a fazer, o que não se deveria permitir, e que terminava com a vitória dos camponeses. Não há dúvidas de que estávamos convencidos de que a obra tinha sempre que terminar com a vitória, para mostrar o bom exemplo. Assim, quando chegava o final da obra, todo o elenco vinha do fundo do cenário com os braços levantados, um fuzil na mão, e cantando uma canção muito forte, que repetia a mesma frase: “Temos que derramar nosso sangue para liberar nossas terras”. Com os fuzis nas mãos, avançávamos cantando: “Temos que derramar nosso sangue para liberar nossas terras”. Essa cena entusiasmava todo o mundo.
Representamos essa obra diante de um público reduzido do Teatro de Arena e depois fomos para o nordeste, para as ligas camponesas, ou seja, fazíamos esse espetáculo para verdadeiros camponeses que trabalhavam as terras, que lutavam e morriam pela terra. A Igreja brasileira nos ajudava. No Brasil, existem duas Igrejas: uma Igreja extremamente reacionária e outra Igreja muito progressista, popular, que realmente deseja seguir o Cristo. Essa segunda vertente da Igreja nos ajudava muito, e continuamos a nos apresentar em terras de camponeses que travavam sua batalha.
A peça era sempre um sucesso, sempre cantando com os fuzis na mão “Vamos derramar nosso sangue para libertar nossas terras”. Até um dia que foi fundamental para mim: o espetáculo findo, veio a ovação dos camponeses que haviam gostado muito do que viram. Era de manhã, e enquanto falávamos com as pessoas, me lembro que apareceu um camponês muito alto e forte, que, quase chorando de emoção, me disse: “Que coisa maravilhosa vocês fizeram, que vêm de uma cidade tão grande e longínqua como São Paulo para dizer exatamente o que nós pensamos”. Nós, muito contentes, olhamos uns para os outros dizendo: “Vejam, nossa mensagem foi aceita, é nossa função educar as massas, conscientizar elas, e o conseguimos .” Mas o camponês acrescentou: “Já que nós pensamos a mesma coisa que vocês, que temos essa identidade de pensamento tão perfeita, de ideologia, peguem seus fuzis tão lindos e venham conosco porque temos que ir a lutar contra um coronel que invadiu nossas terras, e talvez necessitemos derramar nosso sangue.”
Fez-se um longo silêncio. Meus companheiros me olharam e é claro que sempre acho que sou eu quem deve dar explicações. “Companheiro, nós pensamos o mesmo que vocês, por isso estamos aqui. Mas existe um pequeno detalhe: estes fuzis que você está vendo são muito bonitos, mas não disparam ”. O camponês me olhou e perguntou: “Para que fazem fuzis que não disparam? Um fuzil é para disparar”. Tentei explicar que os fuzis eram falsos porque eram estéticos, e seu objetivo não era o de disparar, era apenas estético. “Ter um fuzil na mão quando avançamos cantando ‘Temos que derramar nosso sangue’, dá mais credibilidade às palavras”, eu disse. O camponês então concordou: “Entendo que os fuzis sejam falsos, mas vocês não são falsos, de modo que não se preocupem, podem vir lutar conosco porque temos fuzis para todo mundo”. Nos olhamos outra vez, e eu lhe disse que havia um segundo mal-entendido: “Nós somos verdadeiros, claro, mas verdadeiros artistas, não verdadeiros camponeses”.
Fez-se um desses silêncios monumentais. E ele disse: “Acabei de entender: quando vocês, os artistas, dizem ‘Vamos derramar nosso sangue’, na verdade estão dizendo ‘nosso sangue camponês’, não ‘nosso sangue artístico’”. Só pudemos dar-lhe razão, pedir-lhe desculpas, e pedir-lhe autorização para ir embora pois já estava na hora do avião que nos levaria para São Paulo. Partimos de lá envergonhados e pensando sobre o que estávamos fazendo: incitando as pessoas a fazer coisas que nós mesmos não éramos capazes de fazer nem tínhamos a coragem de fazer. Dizíamos: “Mulheres, façam isso; negros, libertem-se; camponeses, levantem-se e lutem, derramam o seu sangue” e nós olhando o relógio porque o avião não espera, tínhamos que voltar a São Paulo, uma cidade grande, ao nosso conforto para assistir a CNN. Isso não nos pareceu justo e eu me dei conta de que não poderia seguir fazendo aquele tipo de teatro político. Só poderia fazer um teatro político que incitasse as pessoas se nós mesmos fizéssemos as mesmas coisas, corrêssemos os mesmos riscos. Aí sim eu poderia dizer: “Venham comigo, vou lutar com vocês”.
Começamos a pensar no que fazer, porque nunca foi fácil viver de teatro no Brasil, salvo se se fizesse um teatro como o querem as oligarquias, a burguesias, os que têm dinheiro. Mas se se quer fazer um teatro diferente, no Brasil é muito difícil. Nós contávamos com todas as dificuldades; a primeira, a nossa pobreza, era muito difícil conseguir subsídios. Começamos então a inventar: por exemplo, para construir os cenários, usávamos do lixo. A pobreza às vezes nos condena à criatividade; somos pobres, então somos condenados a criar, a nos fazer efetivamente artistas: inventar algo a partir da pobreza. Naquela época, um amigo me contou uma história muito linda: ele fazia espetáculos para os mineiros de minas de estanho e me disse que na maioria dos povoados onde se apresentava não havia eletricidade. Eu disse: “Se não há eletricidade, você tem que se apresentar durante o dia e usar a luz do sol”. Mas meu amigo me respondeu que isso era impossível porque, normalmente, durante o dia os mineiros estavam trabalhando. “De noite, sem eletricidade, como é que você ilumina seus espetáculos?” e ele me explicou: “Temos que ser criativos, eu trabalho com mineiros, e os mineiros tem uma pequena lanterna sobre os capacetes. Quando a obra começa eu lhes peço que olhem para o palco, assim o cenário fica iluminado. Mais, quando uma cena não é boa, o ator se dá conta, porque quando não é boa o mineiro abaixa a cabeça e o palco se escurece, e o ator passa rápido à próxima cena”.
Sempre teremos o inimigo “pobreza”, por isso temos que ser criativos, temos que imaginar o que fazer. No entanto, naquela época tínhamos um outro inimigo: a censura. Naquele tempo, tínhamos que mandar todas as obras teatrais a Brasília, independente de onde o grupo estivesse, e lá os censores policiais cortavam, anotavam, faziam o que queriam e somente depois as devolviam. Ainda, antes da estréia éramos obrigados a representar a peça diante do censor, que assistia a ela sozinho e dizia: “Aqui há muita luz, tem que baixar a luz”, “Esta frase aqui, não” e tínhamos que obeceder.
Se vocês me permitem dizer alguns palavrões, vou contar uma história de que gosto muito. Uma vez dirigi uma obra de um autor brasileiro tratando da corrupção no Brasil. A metáfora da peça era um time de futebol cujo goleiro se vendia e deixava passar alguns gols. Era uma peça muito boa, porque falava da corrupção, e por cinco vezes se dizia a palavra “merda” e uma vez a expressão “puta que o pariu”. Lemos a peça e pensamos que não seria censurada, porque era sobre homens que se expressavam mesmo mal, que eram agressivos. No entanto, tivemos que ir discutir com o censor, porque muitas partes foram cortadas. “Tem muitos palavrões, que não podem usar”, disse ele. Pedimos então que analisássemos juntos cada expressão censurada, para tentar reconhecer sua importância na obra. “Este ‘merda’ nem se escuta, porque os outros personagens estão gritando, este outro é fundamental, porque expressa a irritação, este aqui é logo depois de uma traição, e o último ‘merda’ é essencial para a composição psicológica do personagem”, argumentamos, tentando convencê-lo. E assim pudemos deixar essas expressões na peça. Por isso digo que a censura era o nosso segundo inimigo naquela época.
Na briga com a censura, umas vezes ganhávamos, outras vezes perdíamos. Também é importante destacar o nível cultural dos censores. Um amigo meu de Porto Alegre queria montar a Antígona, de Sófocles. A peça agradou tanto o censor que chamou o diretor para discutir sobre os cortes. “Olhe, li a Antígona, e gostei muito, mas a atitude da protagonista ao enfrentar o Estado pode ser considerada pelos militares como uma oposição à ditadura”, disse o censor. E concluiu: “Mas como eu sou um censor instruído, que dá valor a essa peça e porque não quero cortá-la de qualquer maneira, proponho que façamos uma reunião com o senhor Sófocles para discutir sobre o que se pode cortar e o que não se pode”.
Naquela época, além da pobreza e da censura, tínhamos como terceiro grande inimigo a violência aberta. Me lembro que, entre os anos ’64 e ’68, datas dos golpes de Estado fascistas no Brasil, havia uma certa liberdade possível, embora já fosse importante a violência paramilitar. Já eram momentos em se raptavam e matavam personagens importantes da cultura e das artes. A ditadura chegou inclusive a invadir teatros, destruindo tudo. A mim também me afetou; quando organizei a “Feira São Paulista de Opinião”, que incluía todos os artistas de São Paulo, representavamos armados com revólveres, e no final do espetáculo estudantes se posicionavam diante do palco, formando um escudo humano para nos proteger dos paramilitares.
Foi nesse clima de violência que se fez teatro; estávamos à mercê das pressões, das torturas. Eu fui preso em dezembro de ’70, depois de uma visita a Buenos Aires. Fui liberado três meses mais tarde graças a telegramas e cartas de protesto contra minha prisão, enviadas por pessoas importantes da cultura de vários países, mas outros ficaram presos três ou quatro anos. Meu processo foi mais rápido graças à pressão internacional.
Minha mulher é argentina, por isso vim para cá e fiquei aqui desde ’71 até ’76, vivendo em Buenos Aires. Nesses cinco anos, de início foi possível trabalhar. Formamos um grupo que se chamou Machete, e com ele montamos uma obra minha intitulada Revolução na América do Sul. Um grupo de atores trabalhava comigo: Rudy Chernicov, Arturo Maly, Luis Barón, Norman Briski. Também trabalhava com Mauricio Kartun, com quem desenvolvemos algumas experiências do que veio a se chamar Teatro do Invisível. Primeiro fiz uma peça de minha autoria, chamada O Grande Acordo Internacional do Tio Patinhas, jogando com a expressão “Grande Acordo Nacional”, do General Lanusse. Naquela época, ainda havia uma certa liberdade dentro da ditadura, mas a situação começou a piorar e me dediquei a viajar por toda a América Latina, principalmente ao Peru.
Se aquele camponês foi o primeiro encontro que mudou minha vida e meu modo de pensar o teatro, o segundo encontro se deu em Lima, Peru, onde eu estava trabalhando como diretor da área teatral em um projeto de alfabetização integral que reunia diferentes disciplinas (teatro, cinema, imprensa) e diferentes línguas (quéchua, aymará, castelhano). Comecei a misturar procedimentos teatrais que já vínhamos praticando: um deles era o Teatro Jornal, técnicas que transformavam rapidamente uma notícia de jornal em cenas de teatro; outro era a Dramaturgia Simultânea, preparação de uma peça apresentando um problema que queríamos discutir com o público. Nesse procedimento, o conflito era apresentado até a sua crise, até que o protagonista tivesse que tomar uma decisão. Ou seja, parávamos o espetáculo e eu dizia: “Este senhor, ou esta senhora, estão vivendo uma situação e não sabem o que fazer”. Ao perguntar aos espectadores o que o personagem deveria fazer, gerava-se uma discussão entre eles, e os atores improvisavam as soluções sugeridas pela platéia. Experimentava-se tudo o que fosse possível dentro da situação.
Isso já era um avanço com relação ao teatro de mensagem, ao teatro que dizia o que o outro deveria fazer. Nós conservávamos o poder da cena; os espectadores tinham o poder de nos dizer o que fazer, mas nós conservávamos o poder do como fazer. Por isso digo que foi apenas um avanço, não ainda a superação do teatro de mensagem.
Eu me desenvolvia nessa linha de trabalho, até que me aconteceu uma coisa muito bonita. De tarde, preparávamos o espetáculo improvisando, e de noite representávamos usando as notícias de jornal e o sistema da Dramaturgia Simultânea. Um dia, uma senhora se apresentou no final do espetáculo e me disse: “Que coisa mais linda vocês estão fazendo, muito democrática, porque todos participam, mas é uma pena”. Perguntei por que era uma pena. Ela respondeu: “Uma pena que vocês só se preocupem com a reforma agrária, a polícia, a dívida externa, com temas políticos; eu tenho um grande problema, mas não é político, ou seja, vocês não podem me ajudar.” Eu lhe disse: “Não, minha senhora, todos os problemas, se olharmos bem, são políticos”. E propus que me explicasse o problema, poderíamos ensaiar no dia seguinte, e à noite o público lhe apresentaria soluções. Mas ela insistia que seu problema não era político. Eu insistia que todos os problemas são políticos, porque se passam na cidade, na polis, e que tudo o que se passa na polis é político por definição. “Não, a polis não me interessa, porque o problema aqui sou eu e meu marido, por isso não é político”, argumentava a senhora. E eu arremetia: “‘A senhora e seu marido’, vê como é político? Porque referindo-se a um marido a senhora está dizendo que foi a um lugar público para contrair matrimônio, havia testemunhas e todos assinaram; toda a cidade tomou assim conhecimento de que a senhora tem um marido, o assunto se tornou de interesse geral, é uma coisa que interessa toda a população”. Ela me olhou, surpreendida: “O que acontece na minha casa é político?”, e eu disse: “É a melhor política, porque é em casa que muita gente revela suas verdadeiras idéias políticas. Vejamos: em sua casa, como anda a democracia, o direito à palavra, a repartição das tarefas? Mais político do que isso, não há nada”. Aí então a senhora se convenceu, e contou uma história terrível sobre o marido: que não trabalhava, que o tempo todo pedia dinheiro a ela usando a desculpa de que estava construindo uma casa para os dois em uma cidade vizinha. Ela dava dinheiro pra ele, e ele desaparecia durante uma semana e voltava com um papelzinho escrito à mão, no qual supostamente estavam anotados gastos com ladrilhos. Ela guardava cada um desses recibos, apesar de não saber ler nem escrever. E vinha de volta o marido e pedia mais dinheiro, para comprar portas, por exemplo. Um dia brigaram, e ela começou a desconfiar que tudo isso fosse mentira e que os recibos fossem falsos. Chamou então a uma amiga que sabia ler, e mostrou a ela os tais recibos. A amiga estranhou os papéis, porque tinham perfume, começou a ler, e aí se deu conta de que não eram recibos e sim cartas de amor da amante do marido.
Aí a mulher explicou que no dia seguinte o marido iria voltar pra casa, e ela queria saber o que fazer. Tentei explicar-lhe que eu não entendia dessas coisas, mas que poderia preparar uma peça sobre seu problema e apresentá-la de noite, em Dramaturgia Simultânea, para que o público apresentasse suas sugestões. Mas cometi a imprudência de permitir que ela viesse assistir ao ensaio. Ela chegou no dia seguinte ao ensaio, que já estava avançado, havíamos trabalhado bastante, distribuído os papéis, improvisado, estava tudo mais ou menos encaminhado. Ela começou a olhar, e eu senti que estava inquieta, até que me perguntou: “Quem é este homem?”. Eu expliquei que o homem era um ator que estava fazendo o papel do marido dela. Ela riu e disse: “O senhor pensa que eu me casaria com um homem assim? Eu quero que esse outro ator faça o meu marido”. “Mas eu sou o diretor, deixe que eu escolha os atores”, respondi, mas a senhora acrescentou: “O senhor é o diretor, mas eu sou o personagem, e lhe digo que esta atriz não pode me representar, porque eu não sou assim, não falo assim, por isso prefiro esta outra mulher”. Começou a mudar todas as marcações e os movimentos. “Eu nunca vou para lá, eu nunca digo essa frase.” Mudava tudo. Naquele momento, eu comecei a compreender um pouco porque o marido ia embora; não que o perdoasse, mas compreendia um pouquinho. Cansado com a situação, eu lhe disse: “Bom, então dirija a senhora mesma a improvisação”, e ela começou a dirigir, e para minha irritação, ela dirigia bem. Fiquei com uma grande inveja, porque ela sabia do que falava, não era o artista falando dos outros, era ela falando dela mesma e mostrando o que tinha que mostrar, usando as pausas necessárias, etc. Estava produzindo um bom espetáculo, e minha irritação aumentava, porque eu queria que o fizesse mal, só pra poder castigá-la.
Chega a noite e eu faço uma apresentação: “Olhem, senhores espectadores, para esta senhora (eu falava de modo bem melodramático para puxar a emoção), que sofreu uma terrível tragédia de amor, justamente de amor, que deveria ser a coisa mais bela da humanidade. Hoje não falaremos de reforma agrária nem de dívida externa, falaremos desta mulher que está aqui, e cujo destino depende de vocês”. Assim começamos a peça, tal como ela a havia dirigido: o marido que dizia “ Vou te fazer uma surpresa” e ela que dizia “Quero ver a casa”, e “Me dá dinheiro, pegue o dinheiro”, “Pegue os recibos”. Fizemos perfeitamente tudo o que ela ensaiou, até chegar o momento da crise, quando o marido batia na porta. Nesse momento eu parei o espetáculo e comecei a explicar o que era a Dramaturgia Simultânea. Perguntei: “O que deve fazer essa senhora quando o marido chegar?” e dei ao público três minutos para pensar e discutir sobre soluções. Armaram-se grupos, as pessoas começaram a falar uns com os outros, até que pedi sugestões.
Eu não gostei nada da primeira solução apresentada, mas não se deve discutir o que o público propõe. Alguém disse que o que a mulher tinha que fazer era chorar muito para que ele se sentisse tão culpado de ver a mulher chorando que acabasse por lhe pedir desculpas, e que ela o perdoasse. Então eu pego os atores, dou a eles essas indicações e peço que improvisem. A representação foi boa e terminou com o marido perdoado e pedindo a ela que fosse pra cozinha preparar uma comida porque ele estava com fome. Quando terminou, perguntei: “É isso o que aconselham que essa mulher faça amanhã?” Todas as mulheres se levantaram e disseram: “Nãããããão.”
Pedi então que apresentassem uma outra das soluções imaginadas, na qual ela deveria fechar a porta e não permitir que o marido entrasse, para que ele se desesperasse ao ver que ia perder a sua mulher. Eu disse à atriz: “Deixe ele lá fora, grite ‘tu não vas entrar mais, porque profanaste nossa casa, nosso lar’”. O marido, improvisando, disse: “Muito bem, eu vou embora e você fica. Vou viver com minha amante, gosto dela mais do que de você”. No Peru, quando uma mulher foi casada e se separa, todos os homens pensam que podem dormir com ela, por isso a separação é um perigo para a mulher. Assim, o público viu que essa solução não era ainda a boa.
Veio uma terceira solução: que ela deveria deixá-lo entrar, e depois ela mesma ir morar com a mãe. A atriz improvisou “Vou embora, e você vai ver como faz falta uma mulher que lava e passa”. O marido, improvisando, respondeu: “A mim não me importa, por mim pode ir, quando você for pra casa da sua mãe eu busco minha amante pra vir morar comigo”.
Comecei a me desesperar, porque todas as idéias que surgiam eram ruins. Percebi, do meu lado esquerdo, uma senhora bastante volumosa, que parecia muito inquieta. Delicadamente, cheguei perto daquela senhora grandona e perguntei se tinha alguma ideia já pronta. “Ela tem que ter uma conversa muito clara com o marido e, depois da conversa muito clara, ela o perdoa”, me respondeu. Na verdade, eu fiquei decepcionado, porque esperava alguma coisa mais violenta, ter uma conversa clara e perdoar era o que já havíamos feito. No entanto, para não aborrecer a grande senhora, eu pedi à atriz que improvisasse. “Eu sou uma boa mulher, e é claro que uma mulher boa não deve ser castigada, por isso é claro que essa situação me faz muito mal, porque é claro que minhas amigas vão saber o que se passa, é claro que vão ter pena de mim, e é claro que eu não quero que tenham pena, é claro isso, é claro aquilo…”, a atriz improvisava, e terminou dizendo “é claro que eu o perdoo”, e o marido disse: “É claro que você vai pra cozinha preparar meu jantar”. A improvisação terminou assim e a mulher grande estava furiosa. Eu lhe disse: “Senhora, nós tentamos fazer o que a senhora pediu, mas não funcionou”, e ela respondeu: “Vocês não estão fazendo o que eu disse, porque você é um homem e um homem nunca vai entender uma mulher”. “Estou de acordo com a senhora, é impossível entender uma mulher; podemos amá-las, mas entendê-las… isso não é possível. Estamos de acordo, não entendemos as mulheres, mas a atriz é uma mulher, e pelo visto ela tampouco entendeu”.
Como vi que a mulher não reagia, propus uma segunda tentativa. Peguei a atriz e lhe pedi que tivesse a conversa mais clara da sua vida, e que só depois disso perdoasse o marido. Começou a cena e a atriz parecia uma metralhadora, disparando “claros” por todos os lados, e a cena terminou de novo com o marido furioso dizendo à mulher que fosse à cozinha e preparasse a comida. Quando eu olhei para a mulher, ela já estava de pé e ia saindo da sala. Quis interrompê-la e explicar que estávamos tentando fazer o que ela havia proposto. Ela começou a gritar sem parar, e eu tentando apaziguá-la. Mas chegou um momento em que eu já estava tão furioso como ela, e acabei dizendo: “Por que a senhora não substitui a atriz e mostra a ela do que se trata uma conversa clara?”. A senhora subiu no palco, pegou uma vassoura que encontrou num canto, olhou para o ator, agarrou ele pelo peito e disse: “Primeiro vamos ter uma conversa muito clara: você me traiu” e começou a dar umas vassouradas no ator. Eu pulei em cima da mulher pra que ela parasse, mas ela era muito mais forte do que eu. Faz 45 anos que faço teatro profissional, e juro que nunca na minha vida vi um ator tão sincero como o nosso quando disse: “Me perdoa, não vou trair você nunca mais”. E quando ela acabou de bater nele, o mandou para a cozinha trazer a comida.
Aí eu fiquei comovido: primeiro pela solidariedade com meu amigo, que havia apanhado e estava machucado. Mas, enquanto esteta, pensei: “Aqui acaba de acontecer uma coisa maravilhosa, extraordinária: a transgressão simbólica. A espectadora invadiu o espaço que normalmente pertence aos sacerdotes da arte de interpretar, aos atores; e nesse espaço ela disse ‘eu também quero dizer o que penso, não quero tradução, quero mostrar o que sou capaz de fazer’”.
Sua transgressão simboliza as ações que temos que assumir para nos liberarmos de nossas opressões; a liberdade não nos é outorgada, não é grátis. Uma liberdade que se recebe, pode ser retirada, por isso não é liberdade, seguimos escravos ainda que estejamos livres. A verdadeira liberdade só se alcança quando transgredimos, quando dizemos “eu não quero mais, eu sou capaz de dizer não”. Quando a espectadora subiu ao palco, cometeu uma transgressão, como um religioso que sobe ao altar: “Eu também posso falar com Deus”, como um soldado que ocupa o lugar do capitão para dizer: “Eu não estou de acordo, não quero lutar aqui”. É uma forma de dizer que eu também existo, que quero ser levado em conta e que minha opinião vale. Ela fez isso. Quando vi aquela mulher subir no palco, vi a dicotomia: ela era ao mesmo tempo e completamente o personagem e a espectadora, porque nós, humanos, temos essa capacidade de duplicar, a capacidade de nos vermos em ação. E isso é o teatro no seu fundamento; todos somos atores, queiramos ou não, porque somos capazes desta dicotomia, desta separação. Essa é a primeira parte de um Teatro Essencial. O Teatro do Oprimido se baseia no Teatro Essencial: todos os seres humanos carregam em si mesmos o ator e o espectador, e trazem também o dramaturgo, porque somos nós que inventamos as palavras que dizemos, passamos o dia improvisando. Uma vez, um ator me disse: “Eu não sei improvisar”, e eu perguntei: “O que é que você faz o dia todo . Sabe de antemão o que vai dizer à sua mulher, à sua namorada, à sua esposa, decorou um texto?”. Nós improvisamos o tempo todo, e todos sabem improvisar. O ator que diz “Eu não sei improvisar” está dizendo “Eu não sei ser humano”. Nós somos o ator, o espectador, o dramaturgo, somos também o figurinista, porque vocês estão vestidos assim porque vieram até aqui; se fossem à praia não estariam vestidos assim, nem tampouco se fossem à missa. E vocês, para dirigir toda essa gente (que cada um de vocês representa), tem também que ser um diretor; porque existem inúmeros conflitos entre os artistas que vocês são… Ou seja, nós temos dentro de nós todas as funções teatrais, que alguns saberão utilizar melhor do que outros, mas que todos temos. Eu posso falar, ainda que não seja um orador, ainda que não tenha feito qualquer curso de oratória. Esta é a primeira questão do Teatro Essencial, do Teatro do Oprimido: todos nós, seres humanos, somos teatro, ainda que não façamos teatro.
A segunda questão do Teatro do Oprimido é o Teatro Objetivo. Todos estamos na vida atuando, mas também assistindo atuar, sendo espectadores. Há momentos em que colocamos nossa energia no atuar, outros em que a transferimos ao observar. Por exemplo, essa energia de observar vem agora para cá, para o lugar onde eu estou, e com isso vocês estão criando um espaço dentro do espaço que já existia. Ao criar um espaço a partir do espaço, esse novo espaço se torna dicotômico: se nós somos atores e observadores de nós mesmos, somos igualmente capazes de criar aqui um outro espaço que também é dicotômico. Quer dizer que, além das três dimensões do espaço físico, existem outras duas: a memória e a imaginação. A partir desse momento (do momento em que dirigiram sua energia de espectadores) este espaço é tetradimensional, ou seja, extremamente poderoso.
A terceira questão fundamental do Teatro do Oprimido é a linguagem. A linguagem que nós utilizamos no dia a dia é a linguagem dos atores no palco. Eles falam como nós falamos. A linguagem teatral é a linguagem humana por excelência, é o que já fazemos, não como os atores, porque eles têm consciência disso, mas como seres humanos e sociais.
Então, o que é o Teatro do Oprimido? É um sistema, que começa com os exercícios mais simples, que vão na direção de se sentir o que se toca, de se olhar o que se vê, ou ver o que se olha, escutar o que se ouve, exercícios de múltiplos sentidos simultâneos. Nós temos quatro categorias de exercícios. Depois, fazemos jogos com intercâmbio de mensagens, mas sem utilizar necessariamente a palavra. Também utilizamos uma das técnicas do Teatro do Oprimido, que é o Teatro Fórum.
Outra das técnicas que empregamos é o Teatro Invisível, que consiste em montar uma cena em espaços públicos, em um trem ou supermercado, por exemplo, sem que as pessoas se deem conta de que é teatro, para que elas participem mais intensamente.
Também recorremos ao Teatro Imagem, muito pedagógico. Uma outra forma de encarar este sistema é o “Arco-Íris do Desejo”. São onze técnicas que permitem teatralizar conflitos internalizados nas pessoas, opressões que não são visíveis para os outros. Para trabalhar essas opressões é necessário torná-las teatrais, visíveis. Existe todo um conjunto de técnicas introspectivas com o objetivo de encenar os problemas que temos na cabeça.
A última experiência a que estou me dedicando é a do Teatro Legislativo, que consiste em trabalhar com grupos organizados, sejam eles de negros, mulheres, camponeses, moradores de favelas. Com eles, fazemos jogos, exercícios, utilizamos diferentes técnicas, e depois, a partir das intervenções dos espectadores, tomamos nota de tudo e nos reunimos em escritórios de advogados e assessores para transformar aquelas sugestões, que o povo apresentou dentro de uma instância teatral, em projetos legislativos. Esses projetos são apresentados a diferentes comissões do Conselho Deliberante do Rio de Janeiro. Assim, de quarenta projetos que apresentamos, treze se tornaram leis atualmente em vigor na cidade. Ou seja, a partir do teatro, da vontade do povo, se expressava e se manifestava concretamente o desejo de transformação.
Isso é o Teatro do Oprimido, que não faz nada por si mesmo, mas que serve para que se faça com ele alguma coisa. O Teatro do Oprimido não tem nada de mágico, tem apenas a dinâmica das pessoas, a democratização do pensamento, o intercâmbio e o diálogo de ideias, e o intuito de chegar a coisas concretas.
Em fevereiro [de 2002] se realizará, em Porto Alegre, o Fórum Mundial Social contra a Globalização, e durante o Fórum, de cinco a dez grupos de camponeses Sem Terra vão apresentar suas peças, suas sugestões de mudanças. Vamos ter cinco grupos com quem trabalhamos no projeto do Teatro Legislativo do Rio de Janeiro, e vamos levar um ou dois grupos de presos de São Paulo. Também convidamos um grupo que apresenta teatro de diálogo para que participe de um local permanente que nos foi reservado durante o Fórum. Esse local, esse espaço teatral, não exclui outras formas de teatro. Já fiz todas as formas de teatro, até mesmo o teatro surrealista de Federico García Lorca e Júlio Cortázar. Montei mesmo uma peça muito pouco conhecida de Cortázar, Nada más a Calingasta.
Penso que teatro, temos que fazê-lo de todas as formas possíveis. Fazer teatro é a forma humana de existir, por excelência. O Teatro do Oprimido, portanto, não exclui nenhuma forma teatral, mas ocupa seu próprio espaço: o espaço da democracia, o espaço em que as pessoas podem utilizar o espetáculo, podem utilizar a linguagem teatral para discutir suas opressões, para pensar o passado, para estudá-lo no presente e para inventar o futuro.
Perguntas dos assistentes
O senhor poderia aprofundar um pouco sobre o Teatro Fórum? Ou seja, se trabalha com a participação direta do público na cena, ou se trabalha de forma mista público e atores?
Boal: Depende. Tenho o costume de dizer que todos podem fazer teatro, querendo dizer com isso que o teatro é essencial ao ser humano. Adoro trabalhar com os bons atores, é uma glória ver um ator crescendo, mas gosto muito mais de ver um cidadão que tem algo a dizer e que sobe à cena e lá se expressa melhor do que fora dela. Muitas vezes utilizo atores profissionais para o Teatro Fórum; muitos atores profissionais têm medo deste tipo de teatralidade porque é um ambiente, um território, que não estão acostumados a dividir com ninguém, e ficam com medo de dividi-lo com pessoas que desconhecem completamente os códigos teatrais. Mas os bons atores não têm medo, pelo contrário gostam da ideia porque é para eles uma forma de se desenvolver como atores e como seres humanos.
Qual é a diferença entre o que o senhor chama de ator profissional e não profissional? Seus atores, quando os chama de profissionais, têm uma formação técnica diferente?
Boal: A diferença está no salário. Um ganha salário, o outro não. Para mim, não existe diferença artística. Trabalho com a maior atriz brasileira e também com pessoas que nunca pisaram num palco, e para mim são seres humanos iguais, que utilizarão uma linguagem que nos é comum a todos: o teatro. É claro que quando uma pessoa se profissionaliza ela tem obrigação de saber, senão tudo, pelo menos o máximo que possa. Tem que estudar o tempo todo. O amador também estuda, mas tem menos tempo, porque sua profissão é outra. Vou contar para vocês uma história que aconteceu comigo faz mais ou menos um ano. Eu estava trabalhando com grupos não profissionais, um desses grupos era formado por empregadas domésticas. Um dia elas me disseram que queriam fazer teatro dentro de um teatro, porque eu lhes dizia o tempo todo que o que elas faziam era teatro. “Se fazemos teatro, queremos representar em um teatro de verdade e queremos que tudo seja como é com os profissionais”. Acrescentaram: “Queremos bilheteria, um porteiro que rasgue as entradas dos espectadores”. Eu lhes dizia que a maioria das pessoas que vinham vê-las não tinham dinheiro para comprar entrada. Elas insistiam: “Não importa, tem que ir à bilheteria e tirar um bilhete, mesmo que seja grátis, tem que cumprir todo o ritual, como no teatro profissional”. Eu pensava que não era necessário, mas queriam tanto que eu acabei dizendo “Está bem, vamos fazer assim”. Alugamos um teatro no centro do Rio de Janeiro e fizemos um festival com seis grupos. O primeiro dia foi uma maravilha: o teatro estava cheio, as pessoas aplaudiam muito, entravam no palco, participavam com sugestões. No segundo dia o sucesso foi ainda maior. No terceiro dia as empregadas domésticas chegaram, ensaiaram toda a tarde como profissionais e se apresentaram à noite. A representação foi um sucesso muito grande, mas me disseram que uma delas começou a chorar. Fiquei preocupado, pensando que algo havia passado para que estivesse chorando: bateu na mesa, se esqueceu de uma fala, etc. Fui até ela e perguntei o que havia passado. Ela me explicou que tinha se emocionado muito, porque era uma empregada doméstica, e que às empregadas domésticas se ensina que tem que ser invisíveis, que tem que fazer a comida, levar a comida à mesa, tirar os pratos, lavar, arrumar as crianças para a escola, mas que tem que passar o mais desapercebidas possível. A mulher me contou “Eu gostaria de escutar o que dizem à mesa, os amigos que discutem de política com os donos da casa, mas não posso participar, não posso dizer nada porque sou muda e surda, esta é minha função como empregada doméstica, me ensinaram a não existir. Hoje à tarde estava ensaiando como uma atriz profissional e de repente vi um homem em uma escada arrumando os refletores e me dizendo: ‘Não fique aí, venha um pouco mais para cá, mude de posição porque quero iluminá-la’”. E a mulher acrescentou: “De repente, deixei de ser invisível, de repente surgiu um técnico para tornar meu corpo visível, colocaram um microfone para mim, que era muda, e o que mais me emocionou foi que a família para quem trabalhei durante 10 anos estava sentada na plateia, no escuro e calada. Quando me sentei diante do espelho, no camarim, foi a primeira vez em que vi uma mulher. Antes só via uma empregada doméstica.” Fiquei então pensando no lindo que pode ser o teatro, o lugar onde uma pessoa entra e transforma as imagens. Isto é o teatro: um espelho que nos mostra como nós somos, e o Teatro do Oprimido tem a pretensão de ser um pouco mais, de ser um espelho mágico onde se possa penetrar, e quando uma imagem que vemos lá dentro não nos agradar, modificá-la.
Complejo Teatral de La Ciudad de Buenos Aires
(Complexo Teatral da Cidade de Buenos Aires)
“Centro de Documentación de Teatro y Danza”
(Centro de Documentação de Teatro e Dança)