A terra é redonda
08.05.2020
Augusto Boal
O Ser Humano sempre se fez três perguntas capitais: de onde viemos, quem somos, e para onde vamos?
Essas três perguntas assustam, diante do Infinito das respostas possíveis: não houve começo nem haverá fim!
Para evitar a vertigem do pensamento, foram inventados os Dogmas que, mesmo absurdos e irracionais, explicam tudo de maneira bem simples, como as Histórias da Carochinha.
Na Idade Média, ocidental e cristã – não podemos esquecer que o mundo sempre se estendeu além dessas fronteiras religiosas e geográficas! – os Dogmas religiosos simplificavam a vida de quem neles acreditava, e asseguravam o poder de quem os impunha.
De onde viemos? Ora pois, dizia o Dogma: um velho Senhor de longas barbas brancas, ao qual chamaremos Deus, vagando solitário pelos espaços siderais, um belo dia, entediado, resolveu criar o Universo: separou o Céu da Terra, inventou o Sol e as estrelas, os bichos e a gente. Para poder conversar e trocar idéias com alguém, do barro fez Adão, à sua imagem. Adão, por sua vez, pediu-lhe de presente uma bela companheira para, com ela, brincar. Deus não titubeou: de uma costela do primeiro homem reciclou a primeira mulher, Eva, a primeira Bruxa. Viemos dessas núpcias: está tudo explicado de forma simples, e não precisamos buscar maiores complicações ontológicas, antropológicas e arqueológicas. Adão e Eva bastam.
Quem somos nós? Ora, pois: somos tementes a Deus, é claro, e é assim como deve ser! Para onde vamos? Para o Juízo Final onde se bifurcam dois destinos: se nos comportarmos bem aqui na Terra, ganharemos o Paraíso; se formos malcriados, inconformados, revolucionários, ou até mesmo simples reformistas de centro-esquerda, o Inferno nos espera com seus diabos ridentes, afiados tridentes e fogo sempiterno.
Viram como é fácil? Todo mundo entende, até uma criança de sete anos.
O Dogma tem uma vantagem: não precisa ser explicado e muito menos provado – tudo é assim porque é assim, sempre foi assim e sempre será, e não se fala mais nisso: calem a boca e obedeçam.
Na Idade Média, dois Dogmas desempenharam um papel fundamental: a Terra, centro do Universo, era quadrada e, nos seus quatro cantos, anjos tocavam trombetas o dia inteiro e noite adentro – o resto do Cosmos girava à nossa volta, obediente. Além disso, nós humanos, éramos feitos à semelhança do próprio Deus em pessoa, vejam só que coisa boa… Alguns, um pouco mais semelhantes que outros, um pouco menos, é claro!
Quem dissesse o contrário, tinha o seu destino traçado: as fogueiras da Santa Inquisição! Os Inquisidores visitavam o mundo cristão em busca dos inconformados. Foi a época de ouro do Pensamento Único que, volta e meia, querem nos impor, antes como agora! Muita gente corajosa que desafiava o Dogma foi queimada viva: santos e sábios.
Hoje, diante da evidência dos satélites, já não se acredita mais que a Terra seja tão quadrada assim, e os anjos recolheram suas trombetas e foram tocar em outras freguesias. Mas o Dogma do Criacionismo, mesmo enfraquecido pela Razão, ainda anda solto por aí: mesmo que jamais se tenham encontrado os fósseis de Adão e Eva ou as ruínas do Jardim do Éden, em muitas escolas dos Estados Unidos ainda se duvida de Darwin e da sua Teoria da Evolução das Espécies; ainda se ensina Adão e Eva, maçã e serpente, Papai Noel e Chapeuzinho Vermelho. Cai na prova!
Na Idade Média, os poderosos senhores feudais impunham os Dogmas que fossem convenientes para mantê-los no poder – um deles, era o de que a sua nobreza provinha de Deus.
O Dogma é perigoso porque bloqueia o raciocínio e acanha o espírito: é um beco sem saída, congela a mente.
Ontem, foram os senhores feudais; hoje, são os neo-liberais. Os Dogmas mudaram e agora são outros: o Soberano Dinheiro como possuidor de uma realidade concreta e não simbólica, e a propriedade privada dos Bens da Natureza. São esses os novos deuses dessa religião profana.
Como são Dogmas, ninguém discute, mas seria saudável perguntar: por que o dólar, que se tornou moeda universal, só pode ser fabricado por um só país? Por que o “risco-país” é calculado por um banco credor, sem diálogo com os devedores? Por que a Dívida Externa dos países pobres não sofre nunca auditoria que verifique a sua autenticidade? Por que os juros são sempre tão altos que o principal da dívida jamais poderá ser pago, criando-se assim um vínculo escravatício, em que são senhores os credores e nós escravos, quando o mais lógico seria que o pagamento dos juros não pudesse nunca ultrapassar o montante da dívida contraída, para que essa escravidão não se pudesse eternizar? Por que devemos respeitar patentes farmacêuticas, quando sabemos que muitas empresas estrangeiras fabricam remédios com plantas medicinais amazônicas há séculos usadas pelos indígenas? Por que a terra improdutiva pertence a quem não a cultiva, enquanto que aqueles que a podem fazer florescer ficam fora da cerca?
Por que tantos por quês, que não são nunca questionados?
São Dogmas, e a dogmática economia mundial preza mais o dinheiro abstrato do que a fome concreta, o lucro e não o ser humano. A África agoniza? Não importa: ela já não é mais lucrativa como nos séculos passados – morram todos!
Na Idade Média eram os Inquisidores que viajavam mundo afora à caça aos incréus; hoje, são os negociadores do FMI. Ontem ameaçavam fogueiras; hoje, bancarrotas e represálias.
O segundo Dogma é uma cópia fiel da vida na selva, onde as bestas mais fortes – leões, onças, panteras… – delimitam a seu bel prazer a sua área de caça, e aí ninguém entra. Os latifúndios das feras são sustentados por suas possantes patas e dentes afiados; os dos grileiros, pelos jagunços e suas armas.
O mundo não pode parar. Os humilhados e ofendidos brasileiros já tentaram dois caminhos principais. O primeiro, foi a crença ingênua de que o Desenvolvimentismo seria para o bem de todos, e para sempre. Acreditou-se na máxima: “É preciso deixar crescer o bolo antes de dividi-lo!” O bolo cresceu, foi assado e comido antes que os famintos pudessem provar bocado.
O segundo, foi a tomada do poder pela força guerrilheira, mas a ditadura cívico-militar estava melhor estruturada, muito bem armada, era paga pelo dinheiro do contribuinte, e não havia organização popular que desse sustento a essa luta romântica, que se pretendia de libertação nacional.
O Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra abre um novo caminho – como disso o poeta espanhol Antônio Machado, “o caminho não existe: quem o faz é o caminhante ao caminhar”.
Esse caminho me parece ser o da organização democrática, solidária e expansiva. Ao contrário das antigas Ligas Camponesas, que se formaram sobretudo no Nordeste até 1964, lideradas ou comandadas por um só líder, o MST tem vários, e sua meta é a de que sejam líderes todos os seus integrantes.
O MST é democrático.
Dentro de uma estratégia decidida para o país inteiro, cada setor do MST, em cada região do país, inventa as suas táticas. Esse fato cria maior responsabilidade e maior flexibilidade de ação.
O MST é expansivo.
Ao invés de se concentrar apenas em seus próprios objetivos, o MST apóia e se associa aos movimentos semelhantes que lutam por seus direitos, no campo e na cidade: sua luta é a luta de todos os oprimidos, não é corporativista.
O MST é solidário.
Não contente em se limitar à atividade social e política, o MST compreende que não basta conquistar um pedaço de terra e fazê-la produzir: é necessário que cada camponês seja consciente do país e do mundo em que vive, consciente da família e da sociedade às quais pertence, que estude Filosofia, Economia e História, e que suas reivindicações não se reduzam aos slogans e às frases feitas, mas que se tornem poesia, pintura, música – Arte.
O MST é artista!
Nós, no Centro do Teatro do Oprimido do Rio de Janeiro, trabalhamos com o Patativa do Assaré, grupo formado com camponeses do MST de todo o Brasil, desde o ano 2.000. Esse grupo de multiplicadores, inicialmente formado por 25 homens e mulheres, espalhou as técnicas teatrais do Teatro do Oprimido pelo Brasil inteiro e, hoje, são incontáveis os grupos que as utilizam para mostrar o verdadeiro rosto do MST, deformado pela imprensa neo-liberal. Esses grupos as utilizam também para preparar ações concretas usando o teatro como forma de ensaio para a ação real, e para desenvolver, em cada camponês e em cada cidadão, aquilo que de mais humano existe em cada ser humano: a sua capacidade de criar Metáforas, a sua condição de artista!
O MST descobriu que a Terra é redonda e, nela, vivemos todos: cada um de nós tem o direito de possuir o seu chão, pois somos – todos nós e não apenas alguns! – os verdadeiros senhores dos Bens da Natureza.