Augusto Boal

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Memória de luta, luta pela memória – A árdua jornada pela preservação do Acervo Augusto Boal

02.04.2020

“O arquivo, como impressão, escritura, prótese ou técnica hipomnésia em geral, não é somente o local de estocagem e de conservação de um conteúdo arquivável passado, que existiria de qualquer jeito e de tal maneira (…). Não, a estrutura técnica do arquivo arquivante determina também a estrutura do conteúdo arquivável em seu próprio surgimento e em sua relação com o futuro. O arquivamento tanto produz quanto registra o evento. É também nossa experiência política dos meios chamados de informação.”

Jacques Derrida em Mal de Arquivo.

 

Este texto se propõe a cumprir o papel de um testemunho. Não de um mero relato. A trajetória do acervo de Augusto Boal é mais do que apenas uma descrição das diversas e literais andanças e mudanças que sofreram as muitas caixas de materiais e documentos que hoje formam um arquivo de teatro político de extrema relevância para a história cultural do Brasil. Trata-se de um testemunho porque também abarca a luta para manter viva uma memória, não só a de Augusto Boal, mas uma coletiva. É um testemunho da resiliência de Cecilia Thumim Boal, companheira de vida e de trabalho de Boal, que abraçou a tarefa de preservar (a qualquer custo) um conjunto de materiais colecionados pelo companheiro ao longo de sua vida, por saber de cara pertencia a todos, não só a sua própria memória afetiva. Este texto narra um comprometimento com a luta pela preservação. E também procura dar voz a história do acervo através dos testemunhos, oferecidos a mim, por Cecilia Boal e Celia Leite Costa (que como veremos exerceu papel fundamental nessa história). Portanto, ao contar dos caminhos percorridos pelo arquivo, contamos também uma história de militância. Uma que reflete as dificuldades que a vasta maioria dos acervos de cultura do país enfrentam desde sempre, pela falta de políticas públicas efetivas e contínuas, dispondo apenas de eventuais e escassíssimos recursos públicos e/ou privados. E que sofrem, sobretudo, por omissão, de uma não valorização.

 

No eixo inicial desta história temos Augusto Boal, que em vida iniciou importante processo (consciente ou não) de auto-arquivamento de suas produções intelectuais e de toda sorte de registros de seus próprios trabalhos como teatrólogo, diretor, dramaturgo, escritor, pensador, professor, político e ativista politico-teatral, e que tornaria possível a existência póstuma do referido acervo. Documentação acumulada de forma contínua durante todas as suas mudanças territoriais e profissionais. Segundo Cecilia, nem ela mesma, que o acompanhou mundo afora em exílio político compulsório (passando por Buenos Aires, Lisboa e Paris), havia se atentado aos volumes que armazenavam nas residências que ocuparam durante seus 43 anos de casados. Uma coleção de memórias casualmente (des)organizadas por Boal em caixas, sem métrica, que juntas constituiriam um amplo conjunto de aproximadamente 10 mil itens de produções intelectuais e registros pessoais e históricos. E que imaginamos poderia ter sido ainda mais amplo e robusto não fossem as eventuais perdas decorrentes das constantes travessias fronteiriças.

 

Aqui é inevitável pensar que Boal, dentro de seu entendimento sempre político da vida e da arte, já dava início a alguma instância de preservação, mesmo que de forma espontânea e desordenada. Ao não se desfazer de seus próprios trajetos de memória, ao não negá-los, ainda que primariamente por motivação afetiva, Boal, como um colecionador instintivo, nos permite hoje um olhar futuro sobre o seu trabalho passado. Ou seja, confere ao seu arquivo a mesma potência de suas técnicas teatrais – a partir da valorização da memória e dos processos históricos impulsionar transformações políticas e sociais.

 

Prova disso, é que os caminhos do arquivo propriamente dito foram iniciados por Boal ainda em vida, quando encaminhou em 2008 para a UNIRIO, em regime de comodato, os materiais que havia reunido durante sua trajetória. As caixas, no entanto, permaneceram lá intocadas por dois anos. Até que, já em 2010 (ano seguinte ao falecimento de Boal), após tentar sem êxito (apesar dos esforços) financiamento para a organização e preservação do arquivo, o professor responsável sugere à Cecilia sua retirada, tendo em vista que alguns documentos de suportes mais frágeis começavam a deteriorar. Aqui tem início saga comum a tantos outros acervos que lutam, de forma independente, pela preservação de materiais de notório interesse público, enquanto são obrigados a testemunhar seu possível apagamento fisico pelas múltiplas ações do tempo.

 

Neste mesmo ano de 2010, Cecilia cria o Instituto Augusto Boal, que já nasce com a vocação para a preservação. Visando divulgar e dar continuidade à obra de Boal, o Instituto logo se ocupa de seu arquivo. Este composto por: textos, correspondências, fotografias, recortes de jornais, registros de montagens teatrais e oficinas realizadas em diversos países, além de fitas de áudio e vídeo. As caixas de documentos são retiradas da UNIRIO e colocadas em uma sala, alugada por Cecilia, como pouso provisório. Novas negociações rumam em direção à Fundação Darcy Ribeiro. Por um breve momento os materiais parecem ganhar nova casa. Mas, de novo, a ausência de recursos da própria fundação para manter-se, e com isso tratar o acervo, inviabiliza sua permanência na instituição. É neste interim que Cecilia ganha o apoio fundamental de Celia Leite Costa, que se tornaria, dali em diante, sua fiel companheira neste enredo. Comprovando que redes de apoio e solidariedade continuam sendo importantes alianças na árdua tarefa de lutar por preservação num país desprovido de políticas para tal fim.

 

Célia, historiadora, arquivista e na época, em 2011, diretora técnica da Fundação Museu da Imagem e do Som (MIS), é convidada por Cecilia a colaborar na criação de um projeto de captação para a Lei Rouanet visando a catalogação e organização do material em questão. Junto como Luiz Boal, assumem essa tarefa. Aplicando a metodologia desenvolvida pelo CPDOC[1] (inclusive com a contribuição de Celia durante seus muitos anos de trabalho no centro), estimam inicialmente, a partir das inúmeras caixas de documentos desordenados, um acervo de 40 mil itens, que após posterior limpeza e retirada de cópias, viria a se tornar o conhecido conjunto de aproximadamente 10 mil itens.

 

Sem o apoio de instituição cultural (por também sofrerem de negligência pública e escassez de recursos financeiros) que se disponibilizasse a fazer a guarda e tratamento dos materiais, as caixas retornaram para a casa de Cecilia, ao antigo escritório de Boal. O acervo recebe então proposta de aquisição da Biblioteca da Universidade de Nova Iorque. Mas a ideia de retirar o acervo do país não agrada Cecilia que, a despeito da falta de interesse em território nacional, acreditava que o acervo pertencia à memória do Brasil. A proposta acabou sendo publicizada na imprensa mobilizando determinados setores acadêmicos e institucionais. Surgem tratativas para a aquisição do acervo por parte da Funarte e do Itaú Cultural – todas malfadadas. Até que, neste contexto, em 2011, um acordo alinhavado pelo então ministro da educação, Fernando Haddad, assegura limitados recursos para a preservação inicial dos materiais que seguiriam, em comodato, para a Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

 

Ao relatar esse período, Cecilia ressalta a importância da UFRJ para o acervo através principalmente dos esforços de Eleonora Ziller, do Departamento de Letras, que, junto com Eduardo Coelho, coordenava a pequena equipe designada para iniciar o tratamento do acervo, que logo se encontrou sem condições de manter o trabalho. Como lembra Cecilia, Eleonora não só abraçou o arquivo, institucional e afetivamente, mas conseguiu assegurar recursos para a digitalização das fitas VHS que se deterioravam de forma acelerada. Trabalho este que, por sua vez, foi também motivado e executado por Fabian Boal, filho mais velho de Cecilia e Boal. Mas, como já notório, políticas públicas no Brasil sofrem de crônica e assombrosa volatilidade ou descontinuidade ao sabor das transições (quando não convulsões) políticas do país. As de cultura ainda relegadas a condição de supérfluas. Assim, com os prenúncios das turbulências políticas que afetariam o país em 2013, as condições financeiras da UFRJ são drasticamente afetadas. A dramática precarização das universidades públicas que seguiria (e segue até hoje) atingiu, como sabemos, todo o sistema de ensino, e claro, o trabalho de preservação do acervo.

 

2014 trouxe outros importantes projetos paralelos e com isso novos parceiros e recursos fundamentais para o Instituto Augusto Boal e o acervo. Foi ano de intenso trabalho na preparação de duas grandes exposições que aconteceriam em 2015. A primeira, uma retrospectiva da vida e obra de Boal, no CCBB do Rio de Janeiro. E, em seguida, uma grande exposição sobre o Teatro de Arena de São Paulo[2], intitulada “Arena Conta… Teatro e Resistência no Brasil (1965-1970)”, fomentada pelo Sesc Nacional, com circulação em vários estados. Com a ajuda de Celia, Cecilia começou a mexer nos materiais que seguiriam para as duas exposições. Esse processo gerou dois importantes impactos no projeto do acervo. Por um lado, permitiu que Celia iniciasse seu processo de definição do arranjo documental do arquivo. E, por outro, trouxe recursos para tratar parte significativa dos documentos.

 

O suporte do Sesc ao Instituto torna-se fundamental, em especial através de Marcia Rodrigues, da gerência nacional de cultura. Seu interesse em realizar importante exposição a partir do acervo Boal, acaba por disponibilizar recursos suficientes para que toda a fase do Teatro de Arena fosse catalogada. Mais uma vez faz-se essencial o papel daqueles que compreendem a importância e engendram esforços em prol da preservação e da memória cultural do país. Como Marcia mesmo pontua, em entrevista feita pelo Instituto Augusto Boal sobre o que motivou seu apoio na época: “fiquei impressionada com a riqueza do material e a necessidade de manter o registro dessa história tão importante para o teatro latino americano. Entendo que a preservação desse acervo é importante para a história das artes cênicas no Brasil e na América Latina e infelizmente sabemos que não existem políticas públicas no momento que tenham essa preocupação. O acervo tem a possibilidade de propiciar que gerações atuais conheçam um trabalho pujante, de resistência, que transborda fronteiras físicas com conteúdos estéticos e éticos na dimensão da reflexão e crítica.

 

No ano seguinte, em 2016, é vez do Instituto Moreira Salles (IMS) se interessar pela rica documentação e realiza a exposição “Cartas do Exílio”, baseada nas cartas trocadas entre Boal e seus conterrâneos durante seus quase 15 anos de exílio por conta da ditadura militar no Brasil. Preocupada com a condição física das cartas guardadas, Cecilia negocia com o IMS a doação da totalidade da série documental intitulada ‘Correspondência Pessoal e Correspondência de Terceiros’, já inteiramente catalogada pela pequena equipe do IAB, liderada por Célia.

 

Aos poucos o material vai ganhando corpo e organização, ao passo que a situação da UFRJ infelizmente se deteriora. Em 2018, os materiais que lá ainda se encontravam retornam, mais uma vez, ao seu pouso de origem no antigo escritório de Boal, na casa de Cecilia. Lá, a incansável equipe do IAB com os escassos recursos provenientes dos projetos citados, constroem um banco de dados online e dão prosseguimento a catalogação e digitalização dos documentos, mesmo após findo os recursos. Ainda se empenham em criar e alimentar um site extremamente rico em conteúdo, com a trajetória completa de Boal.

 

Mas a preservação de um arquivo demanda constantes cuidados de manutenção e espaço adequado. Um penúltimo capítulo em busca desse lugar levaria Cecilia a negociações com a Fundação Casa de Rui Barbosa, que demonstrou interesse em abrigar o arquivo no seu Centro de Memória. No entanto, a assinatura do contrato que se daria em julho de 2018 não acontece, mais uma vez, devido as oscilações políticas do país (lembremos, este foi o ano da última e calamitosa eleição presidencial que tomou de assalto o país). Mas, o que outrora poderia reverberar como frustração pela demora burocrática neste processo, acabou por significar, de forma tortuosa, a salvaguarda do acervo. Já que hoje também a Casa de Rui sofre com o absurdo desmonte obscurantista da cultura desencadeado a partir das eleições.

 

Por fim, em 2019, bons ventos voltaram a soprar na direção do acervo, concluindo o que espera-se um capítulo feliz e final dessa história. Após muitas conversas, Cecilia e o Museu Lasar Segall em São Paulo efetivaram a doação do arquivo físico ao museu. O acervo Augusto Boal, que já se encontra de 85% a 90% catalogado e digitalizado, restando apenas uma pequena parcela a ser finalizada pela Lasar Segall, está hoje sob a guarda de suas excelentes instalações técnicas. Já o banco de dados, ou seja, o arquivo online, permanece sob a responsabilidade do Instituto Augusto Boal que, mesmo sem recursos financeiros, o mantem vivo. Esse feito se deve puramente à resistência e militância de Cecilia Boal e dos fiéis parceiros que conseguiu angariar ao longo dos últimos 10 anos.

 

A luta pela preservação é tão política quanto afetiva, e faz jus à história do próprio Boal. Este é um acervo que se propõe a provocar reflexões a respeito das “diversas vertentes da cultura brasileira presentes na obra teatral e literária de Boal, tendo em vista o caráter revolucionário de suas propostas, bem como sua militância por meio do uso de técnicas teatrais.”[3] Em suma, o trajeto percorrido pelo acervo até encontrar-se hoje no Museu Lasar Segall foi um extremamente sinuoso,  mas sem sombras de dúvida construído na luta, com perseverança, solidariedade e, por que não, amor pela cultura.

 

Abri este texto com uma citação de Derrida retirada do texto “Mal de Arquivo”. O arquivo, como indica Derrida, fala não só do passado, mas sobre “a própria questão do futuro, a questão de uma resposta, de uma promessa e de uma responsabilidade para amanhã”. Preservar é também ressignificar, carrega em si a possibilidade de transformação. E, assim, encerro com uma fala de Cecilia Boal que ecoa não só como uma conclusão para sua saga pessoal, mas como um alerta para a situação da preservação e conservação no Brasil. “Hoje em dia o trabalho com acervos, como foi e é com o de Boal, é um verdadeiro trabalho de militância e resistência política, porque o que há no Brasil é um projeto de apagamento da memória. Não só não há resgate, como querem apagá-la.

 

A luta pela memória da obra de Boal está circunscrita na luta pela memória política, social e cultural do Brasil. Ao lutarmos pela nossa memória coletiva honramos Boal, que dedicou sua vida ao exercício pleno da democratização da cultura e ao não apagamento da história de nosso país.

 

por Fabiana Comparato

Fabiana trabalha com pesquisa, tradução, escrita e conteúdos culturais, tendo trabalhado também com gestão e políticas públicas para cultura. Atualmente colabora com o Instituto Augusto Boal, como pesquisadora e redatora.

 

Equipe IAB:

Cecilia Boal

Celia Costa

Thaís Paiva

Alexandre Behnken

Colaboradora:

Fabiana Comparato

 

[1] O Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC) é a Escola de Ciências Sociais da Fundação Getulio Vargas.

[2] O Teatro de Arena, importante celeiro de dramaturgia brasileira nos anos 1950 e 1960, e que revolucionou o teatro no país, foi dirigido por Augusto Boal por aproximadamente 15 anos, de 1956 a 1970.

[3] trecho retirado do texto de apresentação do acervo, encontrando no banco de dados online.