Ensinamentos do Teatro Legislativo para uma Democracia Participativa
20.11.2019
Pedro Vianna Godinho Peria
A pesquisa de Iniciação Científica (Graduação em Administração Pública da FGV-SP), Teatro e Participação Social: a experiência do Teatro Legislativo de Augusto Boal como instrumento de participação(PERIA, 2019), analisou o Mandato Político-Teatral Augusto Boal sob o enfoque da Democracia Participativa e investigou quais os ensinamentos que o laboratório político-teatral empreendido por Boal na Câmara dos Vereadores do Rio de Janeiro de 1993 a 1996 podem trazer para o desenvolvimento de nossas instituições participativas.
Articulando os domínios teatral, da relação constante com grupos de Teatro do Oprimido, e legislativo, da proposição de projetos e articulação político-partidária, o Mandato Político-Teatral de Augusto Boal implementou um desenho participativo novo, aqui chamado de artístico de co-produção e pedagogia. O seu gabinete, que misturava pessoas vindas do movimento social de base com artistas e partidários, passou por conflitos internos e pressões externas para tentar uma outra forma de fazer Política, pela Arte.
Esse projeto democraticamente eleito usou o Teatro como meio para buscar transitividade na Política, baseada na interação, na troca, no diálogo. Buscando escapar do paradigma demagógico – e autoritário -, frequente no contato com oprimidos, Boal decidiu basear as atividades do seu mandato num modelo de produção conjunta e educação política, viabilizados pelas técnicas do Teatro do Oprimido. Aqui reside o primeiro ensinamento do laboratório do vereador. Tratando-se de um projeto de Democracia Participativa, a melhor forma de qualificar a participação é envolver o cidadão, nesse caso, cidadãos oprimidos, em todo o processo de decisão política. Complementar a isso, a educação sobre a administração pública deve ser entendida como central para que o fazer conjunto não se limite apenas àquela decisão política imediata. Assim, o fazer (co-produção) e o conhecer (educação política) são faces de um mesmo processo.
O uso dessas duas dimensões, apresentadas aqui como os caráteres co-produtivo e pedagógico do Teatro Legislativo, significa acreditar na potência de uma cidadania ativa. Se o Teatro do Oprimido permite aos oprimidos o uso dos meios de produção teatral, o Teatro Legislativo permite aos oprimidos o uso dos meios de produção da cidadania. Essa percepção é radical, pois as classes privilegiadas não têm medo da cidadania quanto ela está restrita aos direitos do cidadão como eleitor. Pelo contrário, elas desejam esse cidadão. Temem apenas a cidadania democrática, a cidadania ativa. Há um grande salto qualitativo entre o cidadão meramente eleitor, contribuinte e obediente às leis, e o cidadão que exige a igualdade através da participação, da criação de novos direitos, novos espaços e da possibilidade de novos sujeitos políticos, novos cidadãos ativos. (BENEVIDES, 1994)
Nesse sentido que a capacidade democratizante do Teatro Legislativo deve ser considerada como ampla. Ou seja, deve-se entender a crença numa cidadania ativa e o seu fortalecimento por meio de meios co-produtivos e pedagógicos como um conjunto efetivo para a implementação de modelos participativos profundos.
Estando o primeiro ensinamento possível do Teatro Legislativo ligado ao seu caráter co-produtivo e pedagógico, o segundo aprendizado que pode-se retirar da experiência relaciona-se com o caráter artístico. A grande inovação da proposta boalina é, sem dúvida, o uso de uma Arte Subversiva como meio para a criação de relações políticas co-produtivas e educativas. O sentido transversal que o Teatro do Oprimido toma no Teatro Legislativo produz, como visto, uma característica contraditória, que, se gerou conflitos e desentendimentos internos, também foi responsável por produzir incômodo no ambiente sacralizado da Câmara dos Vereadores. De fato, um dos objetivos era fomentar a cidadania ativa e, como efeito colateral, mas planejado, o Mandato Político-Teatral trouxe transtorno para o dia-a-dia dos representantes. É um movimento coerente: não faria sentido se propor a ampliar a Democracia Representativa sem perturbar os seus cânones. Novamente, sem cair nos vícios da demagogia, o gabinete de Boal mostrou que todo movimento que se proponha disruptivo deve gerar incômodo.
Nesse sentido, o fracasso eleitoral para o segundo mandato talvez mostre uma parte do sucesso da experiência. Se, em apenas quatro anos, a proposta do Teatro Legislativo conseguiu incomodar a mídia, que fez uma campanha de difamação; o prefeito, que vetou todos os projetos que podia; os vereadores, que tentaram cassar o mandato; e o próprio Partido dos Trabalhadores, que não forneceu o apoio devido, é evidente que o sistema político estabelecido se sentiu atacado e impediu a continuidade da experiência. Essa formulação não tira a responsabilidade do dramaturgo em conseguir se emplacar como um candidato forte em 1996, mas mostra como o princípio disruptivo do Teatro Legislativo não foi abandonado ou reduzido durante o mandato.
Esses dois ensinamentos mostram, resumidamente, que um movimento que se proponha participativo deve: 1) fomentar a cidadania ativa por meio de modelos pedagógicos e co-produtivos e, com isso, 2) ser disruptivo, produzindo incômodo no sistema estabelecido. Os efeitos do primeiro tópico poderiam ter sido melhor estudados se alguns integrantes dos núcleos de Teatro Legislativo tivessem sido entrevistados. Como essa percepção não pode ser incluída na análise, essa perde sua força, já que exclui o principal foco da experiência de Boal, os cidadãos oprimidos. Explica-se essa falta pela inexistência de qualquer dado sobre os integrantes dos núcleos, que se desmobilizaram após o fim do mandato. De qualquer maneira, as evidências coletadas são suficientes – não absolutas – para traçar aqueles ensinamentos sobre participação social a partir do laboratório político teatral de Augusto Boal.
Resta saber, no entanto, se tais aprendizados fazem algum sentido visto o atual contexto político. Nos vinte e sete anos passados entre o início do Teatro Legislativo e a data de escrita desta conclusão, a Democracia brasileira passou por momentos marcantes, que mudaram seus rumos. Investigando a campanha eleitoral de Boal, em 1992, percebe-se um clima de grande entusiasmo democrático e desejo por novos projetos. Essa efervescência política, percebida pelo menos no campo da esquerda, foi, de fato, acompanhada por vitórias democratizantes como a consolidação do Regime Democrático após duas décadas de Regime Militar, a alavancagem nacional do Partido dos Trabalhadores como principal representante da classe trabalhadora frente às políticas neoliberais e, conjuntamente, a expansão dos modelos de orçamentos participativos como forma de aproximar os cidadãos da política governamental. Esse momento trouxe o Brasil como um dos focos da literatura sobre novos regimes democráticos, momento que teve seu ápice na vitória eleitoral de Lula, em 2002. Hoje, o país segue no foco das análises de conjuntura política, mas por motivos diversos. Nessas quase três décadas, aquela euforia democratizante da esquerda foi substituída por uma sensação de falta de rumo ou de um rumo assustador.
Em texto recente, Boaventura de Souza Santos e José Manuel Mendes resumem esse espectro e tentam indicar uma saída:
Está no ar uma mistura tóxica de ausência de alternativas e de agravamento da crise, uma entidade mutante que se desdobra em crise econômica, financeira, política, ecológica, energética, ética e civilizacional. Essa mistura tóxica funda tanto a sensação de que algo termina como a de que é impossível que algo novo emerja. Como diria Antonio Gramsci, é um tempo de monstros. Mas certamente são monstros diferentes dos que Gramsci imaginou. Embora Gramsci reconhecesse que o novo ainda não tinha emergido, estava convicto de que ele iria emergir, e, além disso, tinha uma ideia mais ou menos precisa do que seria esse novo, o socialismo e o comunismo. No nosso tempo, o bloqueio do novo parece total e se algum sinal existe de que algo novo pode emergir no horizonte é mais motivo de medo do que de esperança. Um empate histórico parece consumar-se à beira do abismo, de tal modo que nem passos em frente nem passos atrás parecem possíveis. Daí a sensação de implosão, uma ordem que mal se disfarça de caos, um caos que, por repetição, parece a única ordem possível.
[…]
Mas os monstros não são a história toda. Servem apenas para nos chamar a atenção para os desafios com que as lutas democráticas se confrontam no nosso tempo. O mundo está cheio de resistência e luta, de gente inconformada com o presente estado de coisas e a ideia de democracia real continua a alimentar a imaginação e a prática do inconformismo. O nosso tempo é um tempo de incerteza em que é tão importante olhar para o futuro como olhar para o passado. (SANTOS, MENDES; 2018)
Talvez, assim, o laboratório participativo do Teatro Legislativo nos seja útil para além dos dois aprendizados práticos explicitados acima. O entusiasmo embutido na implementação da proposta, bem como as suas consequentes soluções organizacionais, podem ser vistos como possibilidades passadas, mas devem também ser entendidos como inspirações para outros modelos. Nesse sentido, urge revisar métodos antigos e efêmeros, como o Teatro Legislativo, para que, readequados ao contexto atual, possamos desenhar novas soluções.
Referências:
BENEVIDES, Maria Vitória. Democracia e Cidadania. In: RENATA VILLAS-BÔAS (São Paulo). Instituto Pólis (Org.). Participação Popular nos Governos Locais. São Paulo: Insituto Pólis, 1994. p. 11-20.
BOAL, Augusto. Teatro do Oprimido e outras poéticas políticas. Rio de Janeiro, ed. Civilização Brasileira, 6ª edição, 1991.
BOAL, Augusto. Teatro Legislativo. Rio de Janeiro: ed. Civilização Brasileira, 1996.
PERIA, Pedro Vianna Godinho. Teatro e Participação Social: a experiência do Teatro Legislativo de Augusto Boal como instrumento de participação. Iniciação Científica apresentada ao Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica – PIBIC-GVpesquisa da Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getulio Vargas. Orient. Alexandre Abdal. 2019. 120 pgs.
SANTOS, Boaventura de Souza; MENDES, José Manuel. Prefácio. In: SANTOS, Boaventura de Souza; MENDES, José Manuel (Org.). Demodiversidade: Imaginar novas possibilidades democráticas. Belo Horizonte: Autêntica, 2018. p. 9-16.