Augusto Boal

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Uma homenagem à Ruth de Souza – e o papel fundamental de Abdias Nascimento e o Teatro Experimental do Negro para o teatro brasileiro

09.08.2019

Por Fabiana Comparato

No último dia 28 de julho, de 2019, o Brasil se despediu da grande atriz Ruth de Souza, e o Instituto Augusto Boal não poderia deixar de prestar sua homenagem a essa importante mulher e artista, parte fundamental da história da cultura de nosso país.

Ruth de Souza e Augusto Boal não chegaram a trabalhar juntos[1], mas suas histórias, principalmente o início de suas carreiras se assemelham de forma inesperada e ao mesmo tempo simbólica no que diz respeito as batalhas travadas por esses dois artistas em nome de uma representatividade mais democrática dentro da cultura.

Ruth de Souza foi pioneira por abrir caminhos nas artes e inaugurar experiências nunca antes vividas por outras atrizes, principalmente negras, no Brasil. Começou na carreira de atriz ainda no início dos anos 40, época em que praticamente não havia espaço para negros nos palcos e no cenário cultural do país. Início este intimamente ligado à Abdias Nascimento, que, por sua vez, motivado por inquietações a cerca da ausência de negros e de temas sensíveis à história da população negra nas representações artísticas e culturais, idealiza e cria, em 1944, o Teatro Experimental do Negro (TEN). O TEN nasce com a expressa proposta de valorização e protagonismo negro, por meio de atividades de educação, cultura e arte, assim como da criação de uma nova dramaturgia nacional, que englobasse a realidade negra do país. Ruth de Souza adere à proposta de Abdias logo de início, em 1945, quando ainda trabalhava como empregada doméstica. E é no trabalho com o TEN que torna-se a primeira atriz negra a fazer teatro clássico no Brasil – título que, ao que sabemos, carregava com muito orgulho. A estreia da companhia acontece no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, em 1945 – onde nunca antes em seu tablado havia pisado uma atriz negra – com uma montagem da peça “O Imperador Jones”, do dramaturgo americano Eugene O’Neill (que cedeu os direitos do texto em apoio ao projeto do TEN). A escolha por um texto estrangeiro, por sua vez, reflete exatamente a questão motivacional do TEN – a falta de textos nacionais que tratassem dos temas essenciais para a companhia.

Como Breno Lira Gomes, curador e idealizador de uma mostra audiovisual realizada em 2016, no CCBB, em homenagem a trajetória da atriz – Pérola Negra: Ruth de Souza – resume:

Desacreditada no começo, já que atores negros não conseguiam bons papéis no teatro e no cinema, Ruth de Souza quebrou barreiras e abriu caminho para muitos que vieram depois dela. Estudou teatro nos Estados Unidos durante um ano e quando voltou fez sua estreia no cinema com o filme “Terra Violenta“, adaptação de “Terras do sem fim”, de Jorge Amado que a indicou para o papel. A partir daí não parou mais e sua carreira se concentrou no cinema. Trabalhou nas três companhias cinematográficas da época: Atlântida, Maristela e Vera Cruz.

(…) Mas é na Vera Cruz que Ruth de Souza vê sua estrela brilhar. Atriz contratada da Companhia, participa de “Candinho”, “Ângela“, “Terra é Sempre Terra e “Sinhá Moça”. Por esse último torna-se a primeira atriz brasileira a receber uma indicação em um festival de cinema internacional: o Leão de Ouro do Festival de Veneza, em 1954.”[2]

Uma grande atriz que influenciou e abriu portas para futuras gerações, Ruth de Souza fará falta nos palcos e nas telas, mas estará para sempre na história da cultura do Brasil. Assim como o Teatro Experimental do Negro.

Voltando um pouco a esse movimento de extrema importância para o teatro brasileiro e marco na luta pelos direitos civis e raciais ou, como Abdias precisamente colocava, a “verdade cultural do Brasil[3], esbarramos também com a própria formação de Augusto Boal.

Abdias Nascimento talvez seja o grande elo entre Ruth e Boal, mesmo que nunca tenham trabalhado juntos no TEN. Assim como Ruth, Boal também teve seu início de carreira intimamente ligado à Abdias, e só não se cruzaram por uma questão temporal. Ruth passou por lá de 1945 a 1950, indo em seguida estudar cinema em Cleveland, nos Estados Unidos, em 1951; enquanto Boal teve seu primeiro contato com Abdias em 1950, e coincidentemente também passou uma temporada nos Estados Unidos, só que em Nova Iorque, estudando dramaturgia, entre 1953 e 1955.

Boal e Abdias se conheceram no Vermelhinho, antigo restaurante da Cinelândia, no Rio de Janeiro. Criaram ali forte amizade que resultaria em colaborações artísticas no TEN, como relata o próprio Boal neste trecho de uma carta escrita por ele à Elisa Larkin, mulher de Abdias, na ocasião do aniversário de 90 anos do amigo, em 2004:

Abdias é o meu mais antigo querido amigo, nos conhecemos desde 1950 – faz mais de meio século!

Abdias me ajudou muito no meu começo em teatro: lia minhas peças e me dava conselhos, sempre úteis, não só do ponto de vista teatral mas, o que era para mim mais importante, do ponto de vista ético e político.

Eu tinha um contato direto com a pobreza, morando na pobre Penha daquela época, mas foi o Abdias que me ensinou a compreender as causas daquela pobreza. Eu via e odiava o racismo, explícito ou disfarçado, mas foi o Abdias que me ensinou a compreender as razões e a extensão, às vezes até mesmo inconscientes, do racismo brasileiro.

Não esqueci, nem vou esquecer nunca, as conversas que tínhamos, vez por outra, tomando café de pé, em frente ao Vermelhinho, e que tanto me ajudaram na minha formação.

Abdias me ajudou muito, não só a mim mas a muito mais gente – gerações! Não só com aquilo que nos dizia com veemência – Abdias sempre foi um apaixonado! – mas principalmente com o seu exemplo de vida, de integridade, de trabalho: era impossível não ser influenciado por ele.

Em 1953, o jovem Boal, ávido por teatro e recém-formado em Engenharia Química, viaja para Nova Iorque para uma especialização na área química – em plásticos e petróleo – na Universidade de Columbia, enquanto paralelamente estuda dramaturgia com o teatrólogo John Gassner. Em sua estadia em NY, Abdias pede a Boal que entre em contato com Langston Hughes, reconhecido dramaturgo e poeta negro, militante da luta por igualdade racial nos Estados Unidos. Esse importante contato renderia colaborações futuras para o TEN. Em sua volta ao Brasil, Boal traduziria duas peças de Hughes para o TEN – “A alma que volta pra casa” e “O mulato” (encenadas respectivamente em 1955 e 1957).

De fato, as primeiras participações profissionais de Boal no teatro foram com Abdias no Teatro Experimental do Negro, ainda antes do Teatro de Arena entrar em sua vida. Dentro da proposta de criar uma dramaturgia verdadeiramente brasileira, Abdias abre espaço para o jovem dramaturgo Boal, que tem suas primeiras peças encenadas pelo TEN – “O Logro”, em 1953, e “O cavalo e o santo”, em 1954, enquanto ainda morava fora do país. Na sua volta de NY, em 1955, vê também seu texto, “Martim Pescador”, montado, assim como “Laio se matou” em 1958. Boal ainda teve uma outra peça, “Filha Moça”, ensaiada pelo TEN e que seria apresentada em 1956 no Teatro João Caetano. No entanto, o texto sobre costumes de uma família afro-brasileira foi censurado pela Divisão de Diversões Públicas da Secretaria da Segurança Pública, sob a alegação de que o argumento pregava a dissolução dos costumes e da família, não podendo ser encenada em público.

Após esses potentes inícios interconectados, mesmo que desencontrados, cada um dos personagens aqui citados seguiu seu próprio caminho de luta e arte, mas sempre unidos pelo desejo de construir uma cultura atenta as questões sociais do país e imbuída da vontade de reverter suas desigualdades, tendo como um dos seus pilares fundamentais, a luta contra o racismo.

Entre Boal e Abdias, a amizade permaneceu forte. Como possivelmente entre Ruth e Abdias. E assim, estendemos nossa homenagem também à Abdias – o elo afetivo, artístico e político entre Boal e Ruth – um artista, político, professor e sobretudo fervoroso ativista da cultura negra no Brasil e no exterior.

Viva Ruth de Souza! Viva Abdias Nascimento! Viva Augusto Boal!

Ruth de Souza e Abdias Nascimento – Acervo Funarte

 

[1] Ruth de Souza chegou a participar, em 1993, de uma montagem da peça “Zumbi”, de Augusto Boal e Gianfrancesco Guarnieri, mas sem a participação direta do dramaturgo. O Instituto não tem maiores informações sobre essa montagem.

[2] Coutinho, Angélica; Lira Gomes, Breno. Pérola Negra – Ruth de Souza, Rio de Janeiro: CCBB, 2016.

[3] http://www.palmares.gov.br/?p=40416