“O Corsário do Rei” – Boal, o estrangeiro.
26.07.2019
por Fabiana Comparato
“Estrangeiro em minha casa”, é assim, com essas palavras, que Augusto Boal descreve, em sua autobiografia[1], como sentiu-se no momento em que finalmente voltava ao Brasil para montar e dirigir uma peça, por ele escrita, depois de um exílio iniciado em 1971 – o espetáculo era “O Corsário do Rei”.
Apesar de já ter pisado de volta no país em 1979, após ser promulgada a Lei da Anistia no Brasil, ainda residiria em Paris por alguns anos – lá ele desenvolvia trabalho contundente com o Centro do Teatro do Oprimido de Paris. Sua volta definitiva ao Brasil aconteceria apenas em 1986, motivada pela montagem da peça “Fedra”, a convite dos atores Fernanda Montenegro e Fernando Torres, e principalmente para aplicar sua rica pesquisa e arsenal do Teatro do Oprimido, junto com Cecilia Thumin Boal, no projeto dos CIEPS (Centros Integrados de Educação Pública) a convite de Darcy Ribeiro, na época vice-governador do Estado do Rio de Janeiro. No entanto, foi ainda em 1985 que um movimento mais possível na direção de volta começou a se desenhar com a montagem de “O Corsário do Rei”. Movimento que o forçaria a refletir sobre as implicações e formas de se retornar de um longo exílio.
A peça, como conta a pesquisadora Clara de Andrade em artigo sobre o tema, era uma parábola de Boal sobre a “histórica invasão e saque do pirata René Duguay-Trouin ao Rio de Janeiro em 1711, quando os governantes portugueses pagaram o resgate da cidade com ouro, pedras preciosas e açúcar.”[2]A ideia original, de acordo com Boal em sua autobiografia, seria monta-la de forma pequena e simples, com orçamento curto e poucos atores, nos moldes dos tempos pobres do Teatro de Arena. Os produtores, porém, imbuídos de outra atitude, não mediram esforços para colocar de pé um espetáculo de grandes proporções e investimento, o que permitiu a Boal, como nunca em sua época de Arena, dispor de recursos o suficiente para realizar um corpulento musical. O espetáculo, que unia grandes nomes da música e do teatro, contava com um numeroso elenco de 35 atores – entre eles estrelas como Marco Nanini, Lucinha Lins e Nelson Xavier -, músicas de Edu Lobo e letras de Chico Buarque.
Em retrospecto, no entanto, Boal admite que “o elefante que [lhe] foi dado era branco”, já que a grandiosidade adquirida pelo espetáculo acabou por elevá-lo – a sua revelia – a um falso patamar de celebridade e mito. De repente, era como se o diretor enfim retornasse da Europa para os palcos brasileiros com um espetáculo caro e fora dos padrões da realidade do país. A crítica bateu pesado – particularmente em um evento promovido pelo Jornal do Brasil -, pouco no que dizia respeito aos méritos ou deméritos da peça em questão, e muito no que pareciam especulações da classe artística em relação à volta do diretor. Boal mais tarde se daria conta “do impossível. Ninguém volta do exílio, nunca!” O exílio, assim como o tempo, muda a todos, tanto os que vão, como os que ficam, e essas especulações errôneas seriam os inimigos mais duros de Boal durante seu retorno.
O evento em questão foi um debate, organizado pelo Jornal do Brasil, que após cobrir a montagem da peça “O Corsário do Rei”, ao invés de publicar uma crítica, como de costume, resolveu torná-la tema de uma mesa-redonda com convidados da classe artística sob a coordenação do crítico teatral Macksen Luiz (sem a presença do autor e diretor Augusto Boal). Parte do conteúdo do evento foi então publicado no Caderno B Especial de domingo, do referido jornal, na seção “Em questão”, sob a chamada “Ninguém gostou. Parece teatro do deprimido” – em um trocadilho infeliz e depreciativo com o sério trabalho de pesquisa de muitos anos de Boal, o “Teatro do Oprimido”.
Durante o debate, a peça foi “desancada e chegou-se a dizer que ele [Boal] teve sorte de ser exilado.”[3]A repercussão deste episódio especialmente duro para Boal e Cecilia Thumin – sua companheira e colaboradora de Boal na direção da peça – dividiu a classe artística, e até mesmo membros da crítica.
Cecilia se manifestou em um contra-ataque ao que avaliou como um episódio, além de tudo, machista. Seu desabafo foi publicado no Pasquim com o título “Obrigada pela m(*) que me toca”:
“Sendo uma mulher latino-americana, eu já devia estar habituada, embora nunca resignada, ao machismo existente em nossos países, e que é igualmente exercido por homens e mulheres. Mas, depois de ter passado tanto tempo afastada da América Latina, já não acreditava que o machismo pudesse tomar tão grandes proporções. Apesar de figurar como colaboradora do diretor Augusto Boal na mise-en-scène do “Corsário do Rei” comprovei que o meu nome não foi citado uma única vez quando se tratava de criticar e escarnecer o referido espetáculo.
Se a intenção foi a de preservar uma mulher de tanta m(*), declino dessa gentileza e venho, através desta pequena nota, reclamar a parte da m(*) que me cabe.”
Tarso de Castro também publicou seu repúdio ao acontecido em um artigo, chamado “Os corsários do fascismo”, na Tribuna da Imprensa, em 01 de outubro de 1985. Sem meias-palavras, o jornalista relatou o episódio a partir de sua perspectiva:
“Domingo, no Jornal do Brasil, comemorando com adubo de cachorro os 20 anos do Caderno B, reuniu-se um grupo de pessoas para, sob orientação do crítico, simplesmente destruir todo o trabalho feito em torno da peça “O Corsário do Rei”, de Augusto Boal. Não houve nem mesmo a preocupação de um debate sério ou verdadeiro. (…) usando o velho método de pinçar as partes dos depoimentos que interessam às intenções do jornal, o que temos como resultado é uma matéria que deixaria dona Solange Hernandes, nos seus tempos áureos de censura, simplesmente com água na boca. O JB só não informa se ao final desse raro espetáculo facista, a peça terá sido queimada sob os acórdes de alguma música de Wagner.”
Além de jornalistas, artistas, assim como o SATED (Sindicato dos Artistas e Técnicos em Espetáculos de Diversões do Rio de Janeiro) juntamente com a ACET (Associação de Empresários Teatrais), se pronunciaram publicamente para contestar as inverdades veiculadas pela imprensa a respeito do espetáculo e de seu autor-diretor (vejam em anexo), dando a entender, ainda mais claramente, que as “críticas” estavam longe de ser de fato críticas, mas ataques pessoais a Boal com subtextos políticos.
Boal, por sua vez, apesar de não querer responder as críticas feitas especificamente à peça (por as considerar normais no campo da arte), acabou por se pronunciar sobre o episódio. Já de volta à Paris, concedeu uma entrevista a um correspondente do próprio Jornal do Brasil. No melhor estilo contestador de Boal, subverteu a lógica do direito de resposta e colocou perguntas aos leitores do jornal, como uma forma de propor uma reflexão a respeito dos conteúdos veiculados a seu respeito. Mas não antes de declarar sua indignação pelo o que considerou falta de respeito:
“Saí do Brasil porque me disseram que, se continuasse, iam me matar. Nesse sentido, tive sorte. Outros companheiros meus e dezenas de pessoas foram jogadas no mar, de helicóptero, não tiveram a mesma sorte, como a nossa melhor amiga, Helena Guariba. (..) Eu tive sorte de ter escapado, não de ter sido exilado.
(…) Faço teatro há 30 anos, fora o tempo de amador, e estou acostumado a elogios justificados ou não, a críticas e até a pauladas na cabeça. O que me chocou foi o modo como fez essa mesa-redonda. A mesa era quadrada. Chegou-se a dizer que na montagem houve conchavo político, compra de votos, essas coisas. Vai-se ver, pensam que o Governo gastou dinheiro com a peça”. (…) O Governo cedeu o João Caetano e a central de Inhaúma, como faz com outros grupos teatrais. A peça foi financiada por dois empresários, que entraram com a cara e o dinheiro.”
[A íntegra dessa matéria segue abaixo.]
O episódio, extrapolou o que seria apenas uma crítica negativa à uma peça de teatro, e parece ter deflagrado, acima de tudo, uma classe artística rachada, ainda tentando se compreender dentro dos contornos da recém estabelecida democracia da Nova República, após tantos anos de ditadura militar. Como a pesquisadora Clara de Andrade conclui: “A produção de O corsário do rei, portanto, que seria para Boal a possibilidade de reintegração ao meio cultural brasileiro, ao contar com o apoio governamental, acabou servindo muito mais como estopim para o debate em relação à política cultural do início dos anos 80, no Rio de Janeiro.”[4]
Para Boal, no entanto, ressoou em um lugar muito mais íntimo, que o fez sentir-se flutuando entre tribos, estrangeiro fora e dentro de seu país natal.