Augusto Boal

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Nelson Rodrigues – grande amigo psicológico, ferrenho adversário ideológico

19.07.2019

Por Fabiana Comparato

 

A trajetória de Augusto Boal no teatro influenciou diretamente muitos artistas e também se mistura a de muitos outros nomes importantes do teatro brasileiro dos anos 50, 60 e 70 – parte de um conjunto de artistas que neste período e, mais precisamente no contexto do Teatro de Arena de São Paulo, ajudaram a criar e desenvolver o teatro político e uma dramaturgia verdadeiramente brasileira. Mas a carreira de Boal também foi afetada e atravessada por outras figuras já reconhecidas por serem de extrema importância para o teatro brasileiro da época. Uma dessas foi Nelson Rodrigues.  

Nelson, além de ter sido personagem importante no início da carreira de Boal – antes mesmo de se formar na faculdade de Química – tornou-se seu grande amigo.  

(Cabe aqui um parênteses curioso sobre a Química como matéria universitária. Boal conta em uma das muitas anedotas de sua autobiografia, “Hamlet e o filho do padeiro” de 2000, que a escolha se deu em parte por influência de sua namorada na época, “Renata [que] adorava Química” e tentaria  vestibular para essa escola, e de seu pai, padeiro, que descobriu que o químico que fazia o fermento Fleischmann ganhava muito bem. Boal queria mesmo estudar teatro, desde de muito jovem não tinha dúvida: teatro era sua paixão. No entanto, não teria coragem de pedir isso ao seu pai, que por sua vez dizia que os filhos poderiam escolher qualquer profissão desde que uma digna de se tornar doutor, o que não parecia condizente com teatro. Então, a escolha foi simples: Química.) 

Tão logo ingressado na Escola de Química, Boal elege-se Diretor do Departamento Cultural, como forma de se manter próximo de atividades artísticas, e organiza um ciclo de conferências sobre teatro. E é assim, neste contexto, que cria coragem para se aproximar do dramaturgo que mais admirava na época, Nelson Rodrigues. Boal dedica um trecho desua autobiografiaexclusivamente sobre o momento em que o conheceu, intitulada “Nelson, o Padrinho”.

“Fui à redação do seu jornal depois que, pelo telefone, ele concordou em fazer uma palestra. Cheguei, olhei O Dramaturgo e minhas pernas tremeram diante da Divindade!” (p.110)  

A amizade estabelecida naquela época duraria a vida toda, até a morte de Nelson em 1980.

Boal se forma e em 1953 seu pai lhe oferece a oportunidade de cursar uma especialização em Química no exterior. Boal escolhe a Universidade de Columbia, em Nova Iorque, por conta de sua verdadeira vontade de estudar, paralelamente, dramaturgia com o grande crítico e teatrólogo John Gassner (o que o fez com muita dedicação e entusiasmo). De volta ao Brasil em 1955, como ele mesmo relata, lhe choviam ofertas de emprego como químicopor ser um “Columbia-Man”. Mas, naturalmente, Boal não queria seguir essa carreira. Logo procurou seu já amigo Nelson Rodrigues e com ele dividiu sua angustia. Nelson então lhe conseguiu um trabalho que lhe permitiria tempo e prática de escrita. Boal virou tradutor das histórias que eram publicadas na revista X-9, uma revista de crimes policiais, com muito sexo e sangue. Com as técnicas de romance policial que aprendeu, Boal escreveu sua primeira novela “A deliciosa e sangrenta aventura latina de Jane Spitfire, espiã e mulher sensual”, editada por Jaguar no Pasquim.

Nelson também foi o responsável por lhe apresentar outra pessoa que viria a ser amigo de Boal e fundamental no início de sua carreira como diretor, o crítico teatral Sábato Magaldi. Foi durante sua fase como “tradutor” – que, segundo o próprio Boal, estavam mais para re-criações, já que ele modificava escancaradamente todas as histórias que traduzia – que um dia Sábato liga para Boal e diz que o indicou para ser diretor do Teatro de Arena de São Paulo, apesar de Boal na época ter dirigido apenas uma peça durante sua temporada em Nova Iorque. 

“Nelson tinha razão: quem fala inglês é tradutor! Acabei achando que o Sábato também: quem dirige é diretor!”(p. 139)

A partir de sua entrada no Teatro de Arena, a carreira de Boal no teatro só se aprofunda e se estabelece cada vez mais firme e livre para experimentar, não só em criações dramatúrgicas, mas em técnicas e conceituações – que viriam a gerar todas as pesquisas dos mundialmente conhecidos e praticados Sistema Coringa e, posteriormente, Teatro do Oprimido.

Em retrospecto, Nelson parece, de fato, ter tido participação importante nos momentos iniciais da carreira de Boal no teatro, o que explica esse senso de apadrinhamento que Boal lhe confere em sua autobiografia. Desse momento em diante, Nelson esteve sempre presente, apesar de nem sempre perto. Lia e comentava as peças de Boal, e assistia aos espetáculos do Arena quando podia em suas montagens no Rio de Janeiro.

“O principal conselho que me dava e eu me lembro bem, era: – “Deforma!”

Apesar de escrever, mais tarde, uma coluna intitulada “A Vida Como Ela É”, Nelson me aconselhava a deformar a realidade como ela não era, ou, pelo menos, mostrar a minha visão da realidade – fugir da fotografia.

Tinha razão: teatro não é a reprodução do real, é a sua transubstanciação. Arte é Metáfora, não cópia servil.”

(trecho de fala proferida por Boal na Festa Literária Internacional de Paraty, FLIP, no dia 5 de Julho de 2007)

A admiração de Boal por Nelson era reciproca, e é tornada pública quando Boal é preso, em 1971, pela ditadura militar. Nelson se manifesta escancaradamente em sua defesa no jornal, pedindo sua soltura, mesmo como reconhecido apoiar das forças armadas.

 “Vi aquele garoto na porta do teatro (realmente um garoto). Aos seus olhos eu era o “grande autor”. Apresentou-se como um admirador. Estava em cena a “minha tragédia carioca”, Vestido de Noiva. Boal passou dois meses assistindo a todas as representações. Não perdeu uma. Desde então começou uma amizade, que continua até hoje. Portanto, há trinta anos que sou testemunha auditiva e visual de sua fidelidade ao teatro.

(…)

Foi decretada a sua prisão preventiva. Por isso mesmo estou dando meu testemunho. Paro um momento e pergunto a mim mesmo: – o que é que eu teria mais a dizer? Não podemos interromper a obra que está amadurecendo no seu coração, não podemos encerrar uma obra que irá tão longe, tão longe.

(…) – depois de trinta anos de intimidade quase diária, ouso afirmar que esse homem não fez nada senão teatro e é apenas o artista, em sua integridade irredutível.”

(Crônica de 18/03/1971, publicada no livro “O Reacionário, memórias e confissões”, de Nelson Rodrigues)

Quase três décadas depois da morte de Nelson Rodrigues, em 2007, a Festa Literária Internacional de Paraty, FLIP, resolve homenageá-lo. Nesta ocasião Boal produz uma fala que conta sua história de amizade com o dramaturgo, mas também toca em suas significativas divergências políticas. Ponto que talvez seja a maior curiosidade desta relação: como um homem declaradamente de esquerda e outro declaradamente pró-ditadura poderiam nutrir tão forte amizade, afeto e admiração um pelo outro?

Éramos amigos especiais. Grandes amigos psicológicos, digamos assim, e ferrenhos adversários ideológicos. Em política, Nelson era um carinhoso inimigo irreconciliável.

(…)

Quando fui preso, em 71, Nelson escreveu duas ou três Crônicas para me inocentar – queria ajudar. Ele sabia que, para me defender, tinha que mentir. Sabia que eu sempre havia sido e seria sempre um homem político, um cidadão político, um artista.

(…)Nossa arte, além de sentimento e forma, é uma opinião ativa sobre esse mundo que nos inspira e molda.

A isto se chama política: ter opiniões e agir em conseqüência!

(…)

Sei também como é difícil – tão difícil como necessário – separar o amigo do homem público, a arte do artista, um momento da vida, da vida naquele momento.

Eu penso que consigo fazer essa separação, pensando que Nelson ia tão fundo mergulhado na alma dos seus personagens que não chegava a ver a vida como ela de fato era naquele tempo de poder fascista. Nelson via por cima, onde pairava, e não descia aos calabouços.

Apoiando os militares, era como se Nelson pensasse em falsos arquétipos platônicos sem correspondência no mundo real, no qual o que importava era o Milagre Brasileiro e o crescimento econômico, sem levar em conta a realidade verdadeira de que esse crescimento só favorecia aos poderosos, enriquecia os ricos e semeava pobreza, afastava os miseráveis dos bens da vida. O verdadeiro e único Milagre Brasileiro foi o de termos nós, a ele, sobrevivido.”  

Será sempre impossível saber se o diagnóstico de Boal sobre o posicionamento político de Nelson era verdadeiro. Sabemos apenas da grande admiração que Nelson nutria por Boal e que, neste caso, o afeto entre dois dos maiores homens do teatro brasileiro, embora incapaz de remediar, conseguiu  claramente sobreviver as divergências políticas. 

“(…) para os que têm um mínimo de sensibilidade para o teatro, Augusto Boal representa muito. Na minha crônica de ontem dizia eu que ele é um dos maiores autores e diretores do drama brasileiro.

Se acham pouco, acrescentarei que é uma das maiores figuras do teatro em toda a América Latina.

 

[Leia a íntegra da crônica de Nelson Rodrigues de 18/03/1971 em defesa de Boal neste post do Blog do Instituto]

 

Nelson Rodrigues | Registro fotográfico Carlos Moskovics

Acervo Augusto Boal | Registro fotográfico Peter Kunold