Sábato Magaldi, um texto de Priscila Matsunaga
02.08.2016
Sábato, Tiradentes e Boal
Sábato Magaldi foi um dos maiores críticos teatrais brasileiros. Não tive a oportunidade de conhecê-lo e apenas posso admirar seu trabalho pelas inúmeras críticas publicadas em jornais e livros. Como Kil Abreu salientou, com a morte do crítico “fecha-se ao menos em termos cronológicos (mas não de influência) o ciclo da crítica ao teatro moderno no Brasil”. Na feitura da cena e da dramaturgia, Sábato Magaldi e Décio de Almeida Prado acompanharam uma face da modernização do teatro brasileiro registrando sua própria história. Suas primeiras críticas foram publicadas no jornal Diário Carioca. Como nos diz Maria de Fátima da Silva Assunção sobre seu trabalho entre 1950 e 1952, diante de uma produção que não correspondia às expectativas literárias, Sábato foi desenvolvendo sua própria sensibilidade cênica e pedagógica, utilizando o espaço jornalístico para debater e informar o público.
Após retornar de estudos na França em 1953, Magaldi transferiu-se para São Paulo a convite de Alfredo Mesquita. Foi redator de O Estado de São Paulo entre 1953 e 1972 e crítico teatral do Jornal da Tarde entre 1966 e 1988. Ainda no Rio de Janeiro, como salienta a autora, Magaldi interessava-se pelo teatro produzido em São Paulo, que parecia ter mais vitalidade e rigor que o praticado no Rio de Janeiro.
É interessante observar como naquele momento um ambiente de trocas intelectuais e afetivas uniu artistas, professores, críticos que avançaram sobre os limites do próprio ofício, exercendo a política na academia, a pedagogia no jornal, a crítica no palco. Sabemos que nesse ambiente Augusto Boal começou a trabalhar no Teatro de Arena por indicação de Sábato. E apesar da amizade, a crítica militante com vistas ao desenvolvimento de um projeto teatral colocava lentes para os limites das realizações dos parceiros.
Em 1º de julho de 1967 Sábato publicou crítica sobre a peça Arena conta Tiradentes, de Augusto Boal e Gianfrancesco Guarnieri, no Suplemento Literário do jornal Estado de São Paulo. Os elogios à peça, entretanto, finalizam com uma sentença curiosa: “não queremos que o Arena, agora que alcançou maturidade teórica e a melhor realização dramática de Augusto Boal e Gianfrancesco Guarnieri, principie também o seu declínio”.
Sábato destaca na primeira parte do texto a relação da peça, a Inconfidência Mineira, ao contexto, a explicação da derrota da esquerda em 1964. A política como elemento unificador do passado e presente numa autocrítica sobre os incitamentos revolucionários sem a participação do povo. Para tanto destaca falas dos personagens remetendo à políticos da época antes e depois do golpe: “entenda-se Estados Unidos em lugar de Portugal e se terá a imagem exata do que pretenderam os autores”. Há por parte do crítico a eleição de um critério que dirige a crítica, a relação teatro e processo social, que em parte explica a afirmação final, mas o movimento do texto ao invés de aprofundar o debate encaminha-se para questões propriamente teatrais, talvez pelo veículo e estilo do crítico. Ainda nessa primeira parte do texto, Sábato sinaliza que os autores foram impiedosos na autocrítica, com caricaturas maliciosas que por vezes apequenam os personagens históricos. Em um segundo momento, Sábato analisa os aspectos cênicos da proposta de Boal destacando a tentativa de síntese das expressões ainda como pesquisa da cena. Para o autor, o Curinga que é comentador e também personagem entra para preencher um vazio, “exatamente como no jogo de cartas”, o que não permite que a utilização de várias propostas cênicas se transforme em um caos estilístico.
Em seguida identifica a “identidade das teorias de encenação e literatura dramática”, comentando sobre a relação texto e palco ao chamar a atenção para a própria teoria sobre o Sistema Curinga escrita por Augusto Boal. Para Sábato a peça ilustra o sistema de montagem e nasce motivado pelas exigências específicas do texto. O Curinga, como sabemos, foi experimentado em Arena conta Zumbi como modalização da cena e ganhou em Tiradentes perspectiva teórica. Sábato enfatiza o quanto as formas intuitivas e espontâneas passam despercebidas e como soluções mais elaboradas podem desgastar-se em repetições. Não descarta o Sistema Curinga como procedimento também vantajoso em termos financeiros diante das dificuldades enfrentadas pelos grupos durante a ditadura, mas ressalta que talvez o sistema nao funcione em outras ocasiões.
Em termos cênicos, então, procura determinar o que não funciona e elege a música. Como um dos elementos fundamentais para o crítico é a comunicação, a música é um elemento perturbador pois caricatura o próprio texto e desgasta a relação com o público. E aos poucos percebemos que o critério inicial, teatro e processo social, é retomado por uma justificativa teatral e documentária. O julgamento desfavorável dos Inconfidentes, na aceitação do Curinga quanto às observações de Silvério, prejudica as psicologias individuais das personagens. Como o material é histórico, a ressalva articula as figuras históricas sem prescrever o tratamento psicológico tradicional em um drama, naturalmente, não tradicional. Parece o crítico esperar nuances que desarticulem o par Tiradentes-herói versus Inconfidentes-proto-revolucionário. Nessa ressalva, portanto, a crítica desabonadora: os autores estão (Sábato coloca como uma inferência) mais interessados em identificar a “pândega vigente no Governo João Goulart” à “ aprofundar a grandeza libertadora da Inconfidência e o valor simbólico na luta pela emancipação nacional”. Por outro caminho, Roberto Schwarz no ensaio Cultura e política: 1964-1969 identifica o negativo da opção cênica: a inteligência dos Inconfidentes tem maior rendimento ao entusiasmo de Tiradentes. Sábato, entretanto, positiva o tratamento satírico-irônico destinado a Alavarenga ou ao governante Cunha Menezes, com grande eficácia comunicativa. O público lê claramente o período vigente e entre a comunicação e o esclarecimento, parece o grupo ter priorizado o primeiro. Por tratar-se de um “drama histórico” centrado na figura de Tiradentes, valem as ressalvas de Anatol Rosenfeld à incongruência herói-trágico e encenação naturalista para a personagem.
Parece que à identidade teoria da encenação e literatura dramática somava-se o contexto político (nisso a peça pode ser lida, hoje, como uma tragédia liberal nos termos de Raymond Williams). Com outros termos, a crítica de Sábato encaminha os mesmos questionamentos feitos por Anatol Rosenfeld. Não é estranhável que tanto Sábato quanto Anatol esperassem do Teatro de Arena, um dos grupos mais importantes da História do teatro brasileiro, peças e montagens que materializassem as contradições e desafios artísticos e políticos dos anos iniciais da ditadura. Entretanto àquela época não foi possível à Sábato concluir que a interrupção da experimentação não seria resultado do declínio artístico e sim consequência de um período de derrotas, prisões, torturas e exílios .