Augusto Boal

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Texto de Rafael Villas Bôas sobre a forma de narrar de Cecilia Boal

26.07.2016

Rafael Villas Bôas, professor da Universidade de Brasília e integrante do Coletivo Terra em Cena, compareceu à conversa com Cecilia Boal que aconteceu no dia 20 de julho na galeria da exposição “Meus caros amigos – Augusto Boal – Cartas do exílio”, no Instituto Moreira Salles. O texto a seguir apresenta as impressões sobre Cecilia que inspiraram Rafael durante o evento, realizado entre as correspondências e outros documentos expostos, testemunhas do período de exílio de Boal.

Cartas do exílio e a forma de narrar de Cecilia Thumim Boal

Numa tarde fria e chuvosa de 20 e junho de 2016, dentro da pequena sala do Instituto Moreira Salles, no Rio de Janeiro, onde está a exposição Cartas do Exílio, Cecília se pôs a falar para uma plateia interessada, que lotava a sala repleta de cartas, fotos e cartazes.

Pelas cartas de Augusto Boal podemos perceber o gesto da disciplina intelectual de elaborar, sempre, sobre as contradições da realidade em que vivia e com a qual se defrontava. No diálogo com companheiros, como Chico Buarque e Guarnieri, estava sempre a compartilhar sentimentos, impressões, e a combinar trabalhos conjuntos, publicações, peças, músicas. Proletários artistas profissionais, empenhados na melhor divulgação dos seus trabalhos, buscando meios de sobreviver na adversidade, agindo como propagandistas contra o golpe no exterior.

A ligação com organizações políticas, como o Partido Comunista Brasileiro (PCB) e a Aliança Libertadora Nacional (ALN), era também uma característica comum. Tempos menos fragmentados: o trabalho intelectual não estava à serviço de carreiras individuais, a realidade não era apenas objeto de análise.

Mas, naquela tarde estava Cecília a discorrer sobre as cartas: o homem com quem viveu e trabalhou, a ditadura, o exílio e seus múltiplos traumas, ressaltando todavia as possibilidades que a experiência proporcionou à família. De todas as formas como a história pode ser contada, Cecília evita aquelas cujo encaixe de sua presença no processo ou à destaque, ou a reifique, no lugar tradicional da mulher de um grande homem.

Diante de nós estava uma atriz e uma psicanalista, a mulher por quem Boal se apaixonou e levou uma vida junto. Uma trabalhadora que não se vangloria contando os espetáculos em que atuou. O desavisado não saberá por ela, mas pelo cartaz da montagem de “Arena conta Zumbi”, que lá estava ela no elenco, e também de muitas outras peças em diversos países.

Por intermédio de uma carta de Boal para a mãe ficamos sabendo que, por vezes, era ela que bancava a casa – o exílio marcado pelas dificuldades econômicas, com seu trabalho de atriz nas montagens de sucesso que participou.

A condição de psicanalista – a audiência soube por ela que definiu na França abandonar a carreira de atriz porque já não aguentava a cada mudança de país ter que aprender com fluência a língua para poder atuar – confere à narrativa de Cecília um ponto de vista terno e distanciado, tanto sobre a relação de Boal com a mãe, quanto sobre a projeção de culpa que carregou diante do impacto do exílio sobre os filhos dela e Boal.

Essa condição, agregada ao fato de ser argentina, também lhe permite um comentário distanciado sobre o Brasil e seus pactos: de silêncio sobre o passado, de conciliação cordial no presente. Países que promoveram rupturas radicais em seus processos formativos carregam na cultura, na sociabilidade, legados desse gesto. O impasse da conciliação permanente como gesto político não é um dilema de nossos países vizinhos como é para nós, brasileiros.

Por isso ter Cecília entre nós elaborando sobre os (nossos) traumas é uma oportunidade de grande aprendizado: sem vitimização, sem heroísmo, a narrativa de Cecília vai nos mostrando uma personagem fundamental, não apenas do passado, mas do tempo presente.

Esse tempo do agora extravasou os limites da exposição, do período da resistência à ditadura e da expectativa com a democratização. As pessoas perguntavam sobre o Instituto Augusto Boal, sobre a eficácia do Teatro do Oprimido como meio de formação e resistência. Alguns, como o estudante Andrey, do Levante Popular da Juventude, não apenas perguntava, mas dava depoimento de suas experiências com o método.

Cecília e Julian Boal puderam então abordar as redes, os encontros, em que estão ativamente envolvidos. Aqui termino, como testemunha da forma produtiva que ambos têm se colocado no cenário do teatro político contemporâneo: contra a cômoda posição de herdeiros do legado do mestre, os dois, mãe e filho, trabalhadores do teatro – Julian também como pesquisador, fazendo doutorado sobre o tema – têm se colocado como articuladores, mediadores, potencializadores de encontros  intercontinentais entre grupos e movimentos sociais. Por exemplo, ocorreu o Encontro Internacional de Teatro do Oprimido na Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF), do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), de 27 de junho a 01 de julho de 2016, reunindo cem pessoas de oito países e mais de vinte grupos praticantes de Teatro do Oprimido. E o II Seminário Internacional Teatro e Sociedade (SITS), da Rede Teatro e Sociedade, ocorrido na Universidade de Brasília, de 14 a 17 de dezembro de 2015, em que Cecília ministrou uma das cinco oficinas, compartilhando como era o método de interpretação desenvolvido pelo Teatro de Arena, em que ela atuava como atriz e Augusto Boal como diretor.

O empenho de Cecília e de Julian não é o de, tão somente, publicizar uma forma bem sucedida de teatro, mas de questionar a todo momento o limite e a potência das formas e métodos, sempre em contraste com as possibilidades do tempo histórico em que vivemos, e com as condições objetivas de sobrevivência do Teatro Político na atualidade. Sem a reivindicação de um protagonismo espetacular e hierárquico, vão a maneira deles ligando o passado ao presente, promovendo encontros, dando palestras, ministrando oficinas, organizando exposições, construindo elos essenciais.

Rafael Villas Bôas

Professor da Universidade de Brasília

Integrante do Coletivo Terra em Cena

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