Peça retoma e mergulha em montagem de Boal
19.07.2015
via Folha de São Paulo – Nelson de Sá
Com grande engenhosidade na dramaturgia, ‘Os que Ficam’ tenta encenar texto dos anos 1960 do dramaturgo
Ansiava-se há tempos pelo encontro da Cia. do Latão de Sérgio de Carvalho com o Teatro de Arena de Augusto Boal (1931-2009). São os grupos do teatro político mais representativos em seus períodos – a atualidade e os anos 1950/60, respectivamente.
A ponte histórica acabou sendo lançada, um pouco fortuitamente, por uma mostra sobre Boal no Rio e agora pela mostra dos 18 anos da Cia. do Latão em São Paulo.
A “peça-ensaio” resultante, “Os que Ficam”, retrata uma tentativa de encenação em 1973, auge da repressão e da desesperança política, da peça “Revolução na América do Sul”, texto de Boal montado originalmente em 1960, em plena febre revolucionária na região.
O espetáculo tem alguns trechos daquela peça, mas sobretudo pensa sobre ela, conversa com ela e seu tempo. São personagens da época, a começar pela figura do diretor, Fernando, que remete ao ator, encenador e crítico Fernando Peixoto (1937-2012).
O próprio Boal comparece, em primeira pessoa, na forma de cartas enviadas do exílio, algumas de emocionante desencanto. Na curtíssima temporada no Sesc Bom Retiro, os textos são lidos por Lauro César Muniz, dramaturgo que foi lançado então pelo diretor.
BUSCA OBSESSIVA
O efeito imediato que o autor e diretor do Arena tem sobre o trabalho de Carvalho e do Latão – embora o espetáculo tenha nascido fora do grupo, com o elenco carioca – é o de transportá-los de volta aos primeiros espetáculos, como “Ensaio para Danton” (1996) e “Ensaio sobre o Latão” (1997).
Mais que “peças-ensaios”, o que mais as caracteriza e assemelha é serem as três apaixonadas pelos originais que buscam obsessivamente compreender: “Revolução”, “A Morte de Danton” e, na peça que deu nome à companhia, “Hamlet” e “A Compra do Latão”, texto teórico de Brecht.
Em “Os que Ficam”, conta-se uma história de censura e perseguição do teatro, num período que mudou o país e ao qual o título se refere, em parte: são aqueles que ficaram para trás, que não partiram como Boal, que seguem vivendo, e adaptam-se até à televisão.
Mas são também “os que ficam” no Brasil de hoje, sobreviventes e herdeiros, como os três atores do Latão que no início lembram, em depoimentos na primeira pessoa, as suas experiências de crianças da ditadura, ao lado de pais que a combateram ou não.
Podia ser mais uma peça sobre o assunto, entre tantas que há, porém seu mergulho é também formal, não só temático. Como na experimentação incessante de Boal, há grande engenhosidade na dramaturgia, da seleção dos trechos de “Revolução” aos depoimentos e cartas.
E há emoção de sobra, até compaixão, como havia em Boal, por todos os caminhos tomados pelo teatro, representados em “Os que Ficam” pela diáspora dos atores que não conseguem realizar a “Revolução”. Mas que tentam seguir em frente, de algum jeito.