Augusto Boal

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PARA QUE SERVE O TEATRO?

06.05.2013

PARA QUE  SERVE O TEATRO?

Thomas Ostermeier
Para o diretor do Schaubühne de Berlim, não há teatro sem investimento público e sem ancoradouro na sociedade. No artigo, ele analisa as condições “materiais e espirituais” de uma renovação do teatro, que sofre não só com a austeridade, mas também com sua própria tendência de se deixar levar pela ideologia dominante. Por Thomas Ostermeier.
Artigo | 30 Abril, 2013 – 23:00 No portal português www.esquerda.net
Nas pretensas democracias ocidentais, a garantia do interesse geral obriga o Estado a aumentar impostos, cujo produto será redestinado a diversas instituições de acordo com o que elas consideram justo ou indispensável. Que me perdoem a banalidade deste preâmbulo, mas parece importante lembrar como a noção de missão pública se inscreve no próprio cerne das nossas sociedades, a fim de permitir aos indivíduos e aos grupos sociais… o quê exatamente? Ser feliz? Fazer sucesso? Aprender? Abrir-se para outras ideias, outras pessoas, outros coletivos?

A marcha triunfal do neoliberalismo, iniciada em Chicago nos anos 1970 e acelerada pela queda do “socialismo real”, traduziu-se na desregulamentação dos mercados financeiros, mas também na privatização de serviços e de instituições que dependiam, até então, da esfera pública. Essa mudança de paradigma não é estranha à perda de legitimidade do teatro durante o mesmo período. Grande parte da esquerda da Europa ocidental, tradicionalmente cética em relação às instituições, para não dizer anti-estadismo, encontra-se, então, na dolorosa obrigação de defender o Estado contra a ofensiva dos novos discípulos do mercado.
Quanto a mim, sonho com uma sociedade livre do jugo da propriedade privada, na qual os bens e as riquezas pertençam igualitariamente a cada um dos seus membros. Infelizmente, estamos muito longe dessa utopia. E o que é pior, a ideologia do mercado faz a suspeita de totalitarismo recair sobre qualquer reflexão a respeito desse assunto. Até mesmo o princípio de uma redistribuição parcial das riquezas, estabelecida pela burguesia conquistadora nos séculos XVIII e XIX, encontra-se doravante em risco.
Pouco tempo após a criação do Reich, em 1870-1871, durante o período conhecido como “dos fundadores”, teve origem – ou pelo menos foi institucionalizado, portanto, delegado à responsabilidade do poder público – tudo o que está hoje gravemente ameaçado: os transportes públicos, as escolas, as universidades, as bibliotecas, os parques etc. Na época, a burguesia considerava o Estado como a expressão de sua força material e espiritual. Atualmente, ela só o vê como obstáculo à sua prosperidade. Os estabelecimentos culturais com financiamentos públicos, que outrora provocavam a arrogância das elites, perderam na mesma ocasião uma boa parte da sua legitimidade.
Na Alemanha, desde 1992, dezoito teatros tiveram de fechar as suas portas ou fundir-se. Diferentemente do que se faz na França, o financiamento da cultura pertence exclusivamente aos Länders [estados]e às municipalidades. Apesar de Berlim se vangloriar de ser um paraíso para jovens artistas, o seu orçamento para a cultura não excede 2% dos gastos públicos. Se considerarmos que a parte do teatro, inclusive a ópera, representa apenas 1,1% do orçamento (deste, 0,7% somente para o teatro), os debates sobre cortes orçamentais suplementares parecem extravagantes. As proporções não são mais gloriosas em Hamburgo, segunda cidade do país: 2,1% para a cultura, 0,9% para o teatro e a ópera. Uma rápida olhada na situação francesa indica que, em 2013, os gastos públicos previstos para a cultura estão a ser reduzidos em 4,3% em relação ao ano anterior.
Por uma outra história da sociedade
A burguesia lançou ao mar a ideia fundadora de uma representação de si mesma orientada para algo diferente da avidez pelo ganho, enquanto o ceticismo visceral – e com frequência justificado – das classes populares contra esses “templos burgueses” encontra-se em uníssono sem recursos. Há um ano e meio, um motorista de táxi de Amesterdão, ao saber que trabalho no teatro, disse-me sarcasticamente: “Now it’s payback time!” (É a hora da revanche!). O novo governo acabava de iniciar uma operação de desertificação inédita na paisagem cultural holandesa.
É esse o clima que se propaga, hoje, na Europa. Percetível em graus variados em todo o continente, o desmantelamento da cultura aumentou também na Itália e, sobretudo, na Hungria, onde o anti-intelectualismo da classe dirigente, misturado a palavras de ordem abertamente antissemitas e homofóbicas, levou à substituição do diretor do Teatro Nacional de Budapeste por um mercenário do Fidesz, partido da direita nacionalista.
A esse fenómeno, soma-se outro, que gangrena o teatro há uns dez anos. Sob o pretexto de estimular as estruturas independentes, os protagonistas desse meio insurgem-se uns contra os outros. Os fomentadores do teatro livre, ou off,clamam de todas as maneiras que fariam um melhor uso das somas devoradas pelas instituições públicas, fazendo, assim, sem dúvida a contragosto, uma apologia do espírito da época: nós lhes oferecemos mais arte por menos dinheiro. Não é de espantar que essa retórica fratricida encontre um eco crescente junto a conselhos municipais e dirigentes culturais. Efetivamente, o “teatro livre” apresenta uma dupla vantagem: o seu nome atraente evoca a juventude, a não submissão e o romantismo, ao mesmo tempo que se presta a financiamentos de uma extraordinária flexibilidade. Na verdade, nada impede os que tomam decisões políticas de anularem as suas subvenções ou de se voltarem para outros artistas.
Essa flexibilidade obriga cada projeto a ter êxito imediato, sem o qual os seus autores correm o risco de se ver novamente na miséria. Ela impede ao mesmo tempo as companhias e os dramaturgos de inscreverem a sua evolução artística durante a temporada. Para equilibrar o seu orçamento, os artistas ditos “livres” devem sempre correr atrás de “bicos”, em detrimento da sua investigação. E as diversas profissões do palco (cenógrafos, coreógrafos, maquilhadores, pintores etc.) estão ameaçadas de desaparecer.
Os artistas devem enfrentar um enorme desafio: dar, ano após ano, geração após geração, um novo sentido ao teatro institucional. Muitos autores não avaliam a sua chance de dispor de lugares subvencionados. Como eu, a maior parte está impregnada de uma cultura de hostilidade às instituições e observa com desconfiança esses grandes palcos de prestígio, nos quais a vaidade burguesa se pavoneou durante tanto tempo. No entanto, eles oferecem-nos possibilidades de trabalho e meios de produção incomparáveis para contar uma outra história da sociedade.
Certamente, continuamos a ser os palhaços modernos de uma elite que aceita que zombemos dela a fim de desfrutar o privilégio de parecer tolerante e capaz de rir de si mesma. Abandonar esses lugares significaria, no entanto, cortarmos as nossas asas e facilitarmos a tarefa daqueles que sonham tirar-nos o pão da boca. Após 2008, um grande número de empresas nos Estados Unidos retirou o patrocínio, muito influente, da cultura norte-americana. Os atores pagaram caro por isso.
Além das condições materiais degradadas, vivemos uma crise estética, assim como uma crise dos conteúdos. Nos últimos anos, a criação teatral aderiu naturalmente às teorias nem sempre luminosas sobre a pós-dramaturgia e a “performance”. Curiosamente, as formas inovadoras que surgiram nos anos 1970 e 1980 continuam a orientar o credo estético de um grande número de teatros públicos e festivais, ainda que nesse assunto os imitadores estejam longe de se igualar aos seus modelos. Os ingredientes dessa vanguarda insonsa compõem uma papa cénica que passa por modelo do teatro moderno.
A poetologia desse teatro baseia-se na ideia de que a ação dramática não é mais da nossa época; que o homem não poderia compreender-se como mestre das suas ações; que existem tantas verdades subjetivas quanto o número de espectadores presentes; que os acontecimentos representados no palco não exprimem nenhuma verdade válida para todos; que a nossa experiência fragmentada do mundo somente encontra a sua tradução num teatro fracionado, em que os géneros se justaponham: corpo, dança, fotos, vídeos, música, palavra… Essa imbricação sensorial assegura ao espectador que este mundo caótico permanecerá para sempre indecifrável e que não há espaço para procurar ligações de causalidade ou culpados.
Como o seu homólogo socialista, esse “realismo capitalista” estetiza uma ideologia vitoriosa, e não é menos perentório que ela. Num mundo dominado pela doutrina neoliberal, nada poderia dar mais prazer aos seus beneficiários que estes pressupostos: ninguém é responsável por nada, e a complexidade do mundo torna ilusória toda tentativa de circunscrever os seus mecanismos.
Evidentemente, nem todos os representantes do teatro pós-dramático aderem a essa visão. O trabalho de algumas figuras do teatro documentário, como o do coletivo alemão Rimini Protokoll1 ou o do dramaturgo suíço Milo Rau, que muitas vezes beira o jornalismo, parece mais esclarecedor que a maior parte das peças montadas habitualmente. O seu sucesso ilustra, à sua maneira, a crise do teatro tradicional, que, ao se concentrar no repertório clássico, se desconectou da realidade. Pouco preocupado em fornecer ao público um mínimo de reflexo da sua vida cotidiana, o estetismo clássico fixou-se há trinta anos numa piedosa reverência ao passado.
No meio desse círculo fechado, ou dessa espiral descendente, o pacto que liga o teatro às disputas políticas e sociais do seu tempo decompõe-se inexoravelmente. Mesmo que o jogo se ressinta disso, os atores vão buscar as suas emoções nos grandes antigos mais do que na sua própria carne. Consequentemente, especialistas da vida cotidiana mostram-se mais inspirados para testemunhar o estado do mundo do que os atores clássicos, de quem no entanto é a função.
Aí está o nó da crise. Para sair dela, o teatro deveria pensar em fornecer aos seus atores uma formação inicial e contínua. Dramaturgo no Berliner Ensemble, Bertolt Brecht pedia aos seus atores que se confrontassem com o real, que assistissem a audiências judiciárias, que adentrassem nas fábricas para compreender, com conhecimento de causa, o comportamento dos seus contemporâneos. Faço o mesmo com os meus, convidando-os a se inspirar na sua própria biografia e nas suas observações cotidianas.
Que efeitos o temor de ser relegado socialmente produz nos semelhantes? Como a obrigação de ter êxito afeta as nossas emoções, os nossos sentimentos, os nossos desejos? Em que medida a nossa vida privada se submete ao ditame da performance? Quantos futuros se quebram pela condição social do assalariado flexível? Por que dispomos de um vocabulário altamente refinado para analisar as nossas relações conjugais, amorosas ou sexuais, enquanto tão cruelmente nos faltam palavras para descrever o nosso fracasso político (“sistema deteriorado”)? Por que gostamos de alardear uma psicologia de boteco? Por que não tratamos com a mesma paixão desgastes sociais que se espalham há uns vinte anos, apesar de terem graves consequências no nosso corpo e no nosso espírito – horários de trabalho extensíveis, quantificação do cotidiano, obrigação de permanecer disponível para contacto permanentemente, mensagens profissionais recebidas por e-mail até tarde da noite, identificação total com a empresa que me emprega, como se eu fosse casado com ela? Vemos que essas realidades penetram até nos ossos das pessoas com quem cruzamos. Como explicar de outra maneira a recrudescência de artigos da imprensa sobre as doenças do trabalho, o stress, a depressão, a síndrome de esgotamento profissional? A infiltração do pensamento económico nos mais ínfimos vasos capilares da sociedade moderna deforma o nosso corpo, desfigura os nossos afetos.
Santuário habitado por uma força regeneradora
É disso que o teatro deveria falar. É isso que poderíamos representar no palco, e com talento, por menos que alimentássemos a nossa imaginação com a fonte que se acha bem à nossa volta e que nos nutre. Em minha opinião, o teatro ideal guarda a promessa secreta de abordar todos esses assuntos.
Por seu financiamento público, o teatro institucional escapa ainda da lógica da competitividade, mesmo que seja verdade que as considerações de rentabilidade estejam a ganhar terreno. Talvez a sociedade retomasse um pouco da confiança em si, se ela encontrasse alguns palhaços bem ousados para lhe apresentar um espelho, recolocá-la em questão, rir dela sem parar.
O teatro poderia ser assim: um santuário habitado por uma força regeneradora, quando as indústrias dedicadas à narração do mundo estiverem atormentadas por uma exigência de rentabilidade proporcional à sua falta de liberdade – basta ligar a televisão para se convencer disso. A frustração suscitada por médias cada vez menos independentes explica, em parte, por que tanta gente, principalmente jovens, corre para o Schaubühne com a convicção de encontrar ali um lugar onde ainda se pode atuar e pensar livremente. Um lugar onde se podem ver no palco as distorções corporais de pessoas especialistas em flexibilidade.
Ao que se soma que, no teatro, tudo se desenvolve no momento: é impossível fazer várias tomadas ou modificar a montagem como no cinema. É aqui e agora que o ator experimenta o seu papel e que o espectador, como especialista de sua própria perceção, decide se quer mesmo envolver-se no jogo. Em nossa existência superdigitalizada, em que o real é mantido a distância por uma tela de duas dimensões, a missão e o desafio do teatro resumem-se a este momento raro em que uma ação virtual reúne toda a realidade do mundo.
Artigo de Thomas Ostermeier– Dramaturgo e diretor do Schaubühne de Berlim. Publicado por Le Monde Diplomatique

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