Augusto Boal

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Com orgulho em nosso peito

07.05.2020

Augusto Boal

Publicado no Jornal do Brasil, 31 de janeiro de 2002

 

” No fim de 2001, no Memorial da América Latina, em São Paulo, aconteceu a solenidade de encerramento do projeto Direitos Humanos em Cena, realizado em 37 presídios, pelo Teatro do Oprimido, do Rio, em parceria com o People´s Palace Projects, da University of London-Queen Mary. Esse projeto, graças ao caráter humanista da sua proposta e à excelência dos resultados – abrindo o diálogo entre quatro mil presidiários, funcionários e populações vizinhas – recebeu o Prêmio Betinho de Direitos Humanos, oferecido pela Câmara Municipal.

Pela manhã, apresentaram-se os guardas: sua peça mostrava o difícil trabalho em cárceres super-lotados, os baixos salários e a periculosidade da sua missão. Todos os personagens eram, como acontece no nosso Método, representados pelos próprios guardas – mesmo os presos: guardas vestiram uniformes de sentenciados, mãos nas costas e cabeça baixa.

Veio a peça dos sentenciados. Um deles tinha seus dez filhos na platéia, encantados com as recém-reveladas habilidades artísticas do pai: em cena comovente, sua filha de sete anos subiu ao palco para abraçá-lo, e ele teve que abandonar o personagem para trazer a menina de volta à platéia, ao lado da mãe, cidadã livre.

À tarde, momento culminante: prisioneiras encenaram o momento quando uma delas, Amanda, contando sua história, era obrigada a se separar do seu bebê de seis meses, concebido na prisão – mandava a lei! No Teatro do Oprimido, não só se mostra a realidade como é, mas como pode vir a ser! Para isso, vivemos: para vir a ser, não para termos sido!

Confia-se na criatividade: espectadores substituem o protagonista buscando soluções viáveis para problemas reais, transformando o sofrimento em felicidade. Nós acreditamos que o ato de transformar é transformador! O ator transforma a ação,  na ficção teatral, e é por sua própria ação transformado.

A platéia, às lágrimas, vendo a mãe beijar suas despedidas ao filho, tomou seu lugar, sugerindo a construção de creches anexas às prisões, administradas pelas prisioneiras; visitas diárias, depois da escola e antes da cama; e outras formas de não romper, tão prematuramente, o elo entre a mãe e sua cria: a condição de mãe, pensavam todos, era superior á de condenada. Embora sendo a mesma pessoa, aquela não devia pagar pelos delitos desta.

Terminada a parte teatral do evento, as autoridades presentes, unânimes em suas falas, proclamaram a necessidade de dar continuidade a esse projeto, humanizando as relações  entre aqueles que são obrigados ao diário convívio, apesar das diametrais diferenças. Prisão é escola, não é depósito!

Vieram as despedidas. Com carinho, abraçamos presos e presas, guardas e funcionários que nos haviam feito sorrir e chorar, revelando suas esperanças.

Tempo de adeus. No Memorial, entraram seis soldados, armados de metralhadoras, e cada preso deu o braço a seu guarda e partiram disciplinados para o bonde que deveria levá-los de volta às celas.

Um dos guardas ainda teve tempo de dizer: – “Sabe? Sobre Direitos Humanos mesmo, eu não aprendi nada e continuo sem saber o que é. Mas compreendi que esses caras não são bichos: são gente.”

Foi-se embora animado, conversando com seu preso, que já não lhe parecia inimigo: parecia gente. Aquele guarda só não havia compreendido que, agora sim, havia compreendido o que significa, profundamente, a expressão Direitos Humanos: o respeito ao 0próximo. O reconhecimento de que o Outro também é um homem, uma mulher, um Ser Humano.

Como aquela triste mãe a quem a lei obrigava a se separar da criança que ainda não havia aprendido a dizer mamãe; como aquele pai, insuspeitado ator, que emocionava sua menina.

Em nossos peitos, com orgulho – mas não sem tristeza! – luzia a Medalha do Betinho.”