Augusto Boal

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Murro em ponta de faca – o exílio pela primeira vez retratado no teatro

16.08.2019

por Fabiana Comparato

No próximo sábado, dia 17 de Agosto, às 16h, o Instituto Augusto Boal em parceria com a Casa das Artes de Laranjeiras – CAL realizará a leitura da peça “Murro em Ponta de Faca” de Augusto Boal, com direção de João Batista, nos jardins do Museu da República, no Rio de Janeiro. Uma oportunidade especial de ouvir um dos textos teatrais mais potentes de Boal e o que podemos entender como um preliminar re-aportar no Brasil, ainda que não em corpo presente, após forçado ao exílio.

Exilado desde 1971, Boal só voltaria definitivamente para o Brasil em 1986. Um longo período de distanciamento, que ao menos durante seus 8 anos iniciais ocorreu de forma compulsória, em um ato de violência imposta a ele, assim como a muitos outros cidadãos brasileiros contrários ao regime ditatorial instaurado no país em 1964. Mas seria ainda muitos anos antes deste retorno, em 1974, que Boal escreveria “Murro em Ponta de Faca”, quando exilado em Portugal texto que revela sua inquietação frente ao sofrimento por ele vivido e testemunhado em inúmeros de seus compatriotas por conta do exílio. Como Boal descreve em sua autobiografia:

Escrevi Murro em Lisboa quando exilados se suicidavam. Tribo de solitários, tão juntos, iguais: tão sós!

(…)

Suicidas solitários: famílias desintegradas, funções trocadas, cartas embaralhadas, quem é quem? O exílio desintegra – retira de cada um o seu papel primeiro, nega o indivíduo, sua função, seu intimo eu sou! Ninguém é: o pai, a mãe, o filho, o amigo – ninguém é o que era, nem o que será. Flutua!

Sobre as estruturas da família, da amizade, da identidade ideológica, da diferença, sobrepunha-se a rasa igualdade, sem nuanças – todos exilados! Prisioneiros em liberdade: era isso o exílio. (…)

O Murro conta a morte, círculo vicioso, vício do fim.[1]

E é através dessa obra, que fala de tamanha solidão compartilhada no isolamento, que o dramaturgo de certa forma retorna ao seu país, em 1978. Boal chega primeiro pela palavra, ainda que na condição de isolamento físico circunscrita ao exílio que ele bem descreve. O dramaturgo é representado por parte de sua própria história transmitida em uma montagem de Murro em Ponta de Faca pela Companhia de Teatro Othon Bastos. A peça, dirigida por Paulo José, com músicas de Chico Buarque especialmente compostas para o espetáculo, tem sua temporada de estreia no Teatro de Arte Israelita Brasileiro (TAIB) de São Paulo no mês de Outubro. No elenco original, Bethy Caruso, Francisco Milani, Martha Overbeck, Othon Bastos, Renato Borghi e Thaia Perez contam a história de seis exilados políticos brasileiros em suas trajetórias pelo Chile, Argentina e França, em um texto que não abre mão nem do humor, nem da seriedade inerentes ao tema.

O próprio programa da peça era também, por si só, um riquíssimo material, que incluía um texto de Boal e algumas cartas, em um diálogo direto com a obra. Que melhor maneira de revelar o processo por trás da montagem que através de cartas trocadas entre o diretor em exílio e a equipe da produção. Difícil não se emocionar ao ler: a carta-cantada “Meu Caro Amigo”, de 1976, que Chico enviou para Boal em uma fita cassete para Lisboa, e que viria a se tornar uma das músicas mais conhecidas do compositor; a carta escrita à mão de Boal para Fernando Peixoto, Othon Bastos e Martha Overbeck, contando da alegria imensa sentida à distancia ao saber que gostaram do texto (imagem abaixo); ou a carta de Fernando Peixoto aos produtores da peça assim que soube que não poderia mais dirigir a peça, e sugerindo então o nome de Paulo José; e o trecho da carta de Paulo José a Boal dizendo o quão “eloquente e tenro” era seu murro. O programa ainda continha um trecho do pronunciamento de Boal no comitê pela Anistia no Brasil realizado em 1977 em Lisboa; um artigo do editor Sergio Pinto de Almeida para a Folha de São Paulo sob o título “O teórico de teatro que o Brasil expulsou”; e encerrava com um comovente depoimento de Gianfrancesco Guarnieri, seu grande companheiro de criação e amigo próximo. Não à toa, ele resume bem esta obra de Boal, de forma que só quem o conhecia com intimidade poderia fazê-lo:

Murro em Ponta de Faca de todas as peças de Boal é a que transmite o Boal verdadeiro – ou melhor, o Boal mais completo. Perpassada de emoção, distancia-se das outras obras onde predomina a ironia, a mordacidade, o humor racional. Nesta peça, sem prejuízo do estilo próprio, Boal não só analisa, mas vive com seus personagens, ri, chora, padece com eles o terrível drama do exílio. Não é uma peça sobre o “banzo”, estilo “minha terra tem palmeiras onde canta o sabiá”, é uma exposição exata e pungente da condição de exilado, do horror das perseguições, da promiscuidade dos refúgios, do andar em circulo daqueles a quem se nega pouso, pátria, raiz.

(…)

Obra importante em qualquer tempo ou lugar, é de extrema oportunidade hoje e agora, no momento em que a consciência nacional brasileira clama por anistia ampla e irrestrita para os presos e perseguidos políticos.

O espetáculo é muito bem recebido pela crítica teatral que compreende, de imediato, sua importância histórica. Afinal, essa seria não só a primeira vez em 8 anos que o Brasil veria de novo um texto de Boal montado, mas também a primeira vez que a questão dos exilados políticos seria abordada na dramaturgia do país. Boal não pôde assistir a grande estreia de sua obra, já que a montagem se deu um ano antes de promulgada a Lei da Anistia[2], que permitiria à maioria dos perseguidos políticos retornar ao Brasil sem correr o risco de serem (mais uma vez) vitimas arbitrárias do Estado. Mas, sua obra, acabou por se somar ao debate a respeito da anistia. O dramaturgo testemunhou de longe, através de relatos e críticas, o sucesso de sua peça. Por sinal, época em que as críticas eram verdadeiros ensaios qualificados, quase sempre extensos, chegando a ocupar uma página inteira de jornal ou até mesmo ter sua publicação dividida em partes ao longo de alguns dias.

Um exemplo destes artigos de página inteira, foi “Boal, tão longe e tão presente”, do grande crítico e teatrólogo Yan Michalski (que, inclusive, depois viria a fundar a Casa de Artes de Laranjeiras – a CAL), publicado no caderno B do Jornal do Brasil, em 13 de outubro de 1978. Logo de saída, Yan contextualiza sua crítica apresentando a importância histórica do acontecimento:

O que confere a Murro em ponta de faca, peça de Augusto Boal estreada em São Paulo, a condição de acontecimento marcante não é tanto o calor humano, inteligência e força poética do texto, nem a habilidade e a coerência da encenação – por mais raras e bem-vindas que tais qualidades sejam no atual teatro brasileiro. É o fato de trazer de volta a um palco do Brasil o nome, o pensamento e a paixão de Boal, excluídos do nosso convívio há longos anos. O mérito maior de Othon Bastos, Renato Borghi e seus companheiros não reside só em terem realizado um espetáculo de bela generosidade teatral. Reside também, e muito, em terem exposto à consciência da nação a evidencia da irracionalidade de uma situação que, em nome de uma pressuposta periculosidade de quaisquer ideias eventualmente divergentes daquelas consagradas pelo esquema dominante, forçava ao exílio um dos nossos mais lúcidos, talentosos e amadurecidos criadores teatrais, enquanto o teatro brasileiro, por falta de número suficiente de cabeças pensantes do gabarito da de Boal, transformava-se num deserto de ideias. Agora, uma peça de Boal estreou, e certamente nada de ruim vai acontecer ao país por causa disso. Pelo contrário, alguns milhares de pessoas poderão dar-se conta de que o Brasil com Boal – ainda ausente em pessoa, mas afinal presente através da obra – é melhor, é mais rico, do que sem ele. Mas quanto tempo desperdiçado…

O fato é que a produção de Murro transcendeu a discussão sobre a sua própria qualidade artística. O tema dos exilados era enfim abordado em suas implicações humanas, sociais e culturais, e talvez isso tenha sido o ponto a sensibilizar a opinião pública e a crítica, depois de tantos anos de silêncio e censura sob um regime linha dura, que acabara de publicizar, no mesmo mês e ano que a peça estreava, a decisão de revogar o Ato Institucional – 5 (o mais duro e perverso de todos atos emitidos pelos comandantes da ditadura).

O também renomado crítico e teatrólogo Jefferson del Rios, é mais um a tecer seus pensamentos em relação a relevância da peça em um longo e minucioso texto entitulado “Enquanto não chega o dia de voltar para casa”, publicado no caderno Ilustrada da Folha de São Paulo, em 11 de outubro de 1978.

Murro em Ponta de Faca não é um convite ao sofrimento ou ao revanchismo. É teatro com preocupações políticas e humanas sérias. Sobre brasileiros que se desavieram com o regime e não querem ser ignorados. Um espetáculo que não está pedindo nada – e aí sua grandeza – além do direito de avivar a memória da plateia. As conclusões e atitudes posteriores ficam por conta da consciência de cada um.

No ano seguinte, em março de 1979, a peça fez mais uma temporada, dessa vez no Teatro Dulcina, no Rio de Janeiro, com a mesma direção de Paulo José e duas substituições de elenco: entraram Dina Sfat e Otávio Augusto nos lugares de Thaia Perez e Francisco Milani. É também em 1979 que Augusto Boal finalmente vê sua peça viva, com pulsação, pela primeira vez na França. Em Paris a peça é montada com o título “Coup de Poing Sur La Pointe Du Conteau”, no Théâtre Présent (atual Théâtre Paris-Villette), sob sua própria direção. O espetáculo ainda continua a rodar na década de 80, ganhando produções na Áustria e Alemanha, além de uma outra montagem em São Paulo.

Parafraseando Paulo José em sua carta para Boal, e que, por sua vez, parafraseava Walt Whitman: “cuidado, quem toca nesta peça, toca num homem!” O Murro de Boal “tem a paixão da porrada e a sabedoria que faz chegar plena ao objetivo[3] e constitui capítulo importante da história da dramaturgia brasileira.

[1] Augusto Boal, Hamlet e o filho do padeiro. Rio de Janeiro: Editora Record, 2000. Pg 295.

[2] Lei da Anistia é promulgada em Novembro de 1979.

[3] Trechos extraídos do programa da montagem de 1978 de Murro em Ponta de Faca – acervo Instituto Augusto Boal.

 

Acervo Instituto Augusto Boal

Acervo Instituto Augusto Boal

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