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Coragem de Ser Feliz – A campanha de Augusto Boal para vereador da cidade do Rio de Janeiro a e gênese do Teatro Legislativo

05.06.2019

por Fabiana Comparato

Na esteira do último texto publicado no blog do Instituto Augusto Boal, e considerando o contexto de severa crise que assola a democracia (não só no Brasil, mas no mundo), nos propomos a explorar um pouco mais sobre a atuação de Boal na política formal. Por um lado, como forma de trazer luz a essa importante parte, por muitos desconhecida, de sua trajetória (e contribuição à população da cidade do Rio), mas também como uma possível fonte de inspiração para a luta democrática e pela cultura em tempos que parecem navegar rumo ao obscurantismo.

Assistimos, mais intensamente hoje, ao desmonte (principalmente por parte dos governos executivos do país) das instituições e organismos públicos de cultura e educação – ou seja, dos setores, numa sociedade, que possibilitammais diretamente o fomento do pensamento crítico, político, artístico e livre. Crise está intimamente conectada às questões que pairam sobre a própria funcionalidade da nossa democracia ou do que entendemos como sendo o nosso Estado Democrático de Direito tal como apresenta-se em prática.

Para Augusto Boal, fazer cultura, fazer política e ser um cidadão sempre foram estados indissociáveis de existência. Mas, durante a maior parte de sua vida, sua atuação permaneceu no campo civil, como agitador, pensador e fazedor teatral. Até encontra-se, no início dos anos 90, em meio a uma conjuntura (por ele também provocada) que o fez juntar-se, por todas as mais nobres razões, à seara da política formal, ao passo que explorava mais uma nova etapa de sua contínua pesquisa politico-teatral – o Teatro Legislativo. Prática que propunha de forma legítima uma real experiência de democracia participativa, e que resultou em uma campanha para vereador que apresentava propostas tangíveis e agregadoras de democratização da cultura e dos dispositivos de exercício da cidadania.

No livro “Teatro Legislativo”, publicado em 1996, já se aproximando do final do seu mandato como vereador da cidade do Rio de Janeiro, Boal conta em detalhes a gênese dessa prática e por conseguinte de sua aproximação e entrada na política formal. E assim como em toda a sua pesquisa teatral, as ideias e experiências para esta etapa também surgiram de um olhar atento à sociedade ao seu redor.

Foi em 1982, que Boal, ainda em exílio na França, encontrou com Darcy Ribeiro (a época recém eleito vice-governador do Rio de Janeiro, a tomar posse em 1983) em um seminário internacional sobre culturana Universidade Paris-Sorbonne – ambos participando à convite do governo francês. Nesta ocasião, Darcy conheceu e fascinou-se pelo trabalho que Boal vinha desenvolvendo, desde 1978, no Centro do Teatro do Oprimido (CTO) em Paris, vislumbrando possíveis ressonâncias com a idéia de criação dos CIEPS (Centros Integrados de Educação Pública). Mas foi apenas em 1986, quando Boal finalmente retornou do exílio junto com Cecilia Thumin (sua companheira de vida e de trabalho), que os dois puderem aplicar as técnicas do Teatro do Oprimido dentro dos CIEPS. O ano era de campanha eleitoral para o cargo de governador do estado. Darcy concorreu e perdeu. E com isso a parceria durou apenas 6 meses (os últimos do mandato de vice-governador de Darcy). No entanto, apesar de breve, a experiência foi suficiente para demonstrar sua potência e entusiasmar muitos dos envolvidos.

Mesmo sem interesse por parte da administração pública ou de empresas patrocinadoras, Boal deu sequência ao seu trabalho. Em suas próprias palavras “sementes germinam” – e assim o diretor e sua trupe criaram o CTO do Rio de Janeiro, em 1989, de forma informal e independente. No entanto, magro, o centro não possuía meios de resistir por muito mais tempo e em 1992 encontrou-se sem saída a não ser encerrar suas atividades. Por se tratar de ano de eleições municipais, o grupo resolveu fazer de sua última ação uma atividade festiva, exortativa e política (como todo o trabalho de Boal). Juntaram-se de maneira voluntária à campanha do Partido dos Trabalhadores, com a condição de que alguém do grupo se apresentasse como candidato à câmara de vereadores do Rio de Janeiro. Boal aceitou o desafio quase certo de sua não-eleição e, talvez por isso mesmo, o fez de forma fiel ao seu teatro e aos seus princípios, sem a preocupação primeira de “conquistar” votos.

Com o grupo do CTO praticando Teatro-Fórum quase todos os dias na rua, a campanha rica de idéias e ações, embora pobre de investimento financeiro, ganhou inesperado espaço na imprensa e corpo nas ruas. Boal começou então a vislumbrar a real possibilidade de ser eleito e com isso de colocar em prática a idéia do Teatro Legislativo. Em outras palavras, ir além da experiências até então conhecidas do Teatro do Oprimido e vivenciar uma verdadeira “democracia transitiva”.

Para dar uma ideia da nossa pobreza e criatividade, nossos buttons eram pintados à mão, um a um, em chapinhas de garrafa de cerveja. Chapéus, com a minha caricatura arlequinesca, feitos de papéis maché eram pintados à mão, um a um. (…) nossas faixas eram sonoras, com guizos pendurados em fitas, acompanhando as vozes dos manifestantes. Era preciso honrar nosso lema: “Coragem de Ser Feliz!” (p. 39)

Muitos artistas antes dele já haviam se colocado o desafio de entrar na arena política em nome da cultura e da arte. No entanto, essa seria a primeira vez na história, tanto do teatro quanto da política, que uma companhia teatral seria eleita para uma vaga no poder legislativo. As propostas de Boal e do Centro do Teatro do Oprimido eram claras desde do princípio. Como explicitado no material de campanha, as motivações e intenções desse mandato político-teatral eram “simples“:

eleito, eu e meus quinze assessores (escolhidos entre os melhores animadores culturais, artistas, professores, trabalhadores sociais…) vamos criar o maior número possível de Centros Populares de Cultura, em todo o Rio de Janeiro (…). Cada CPC será um centro de diálogo (…) onde cada espectador se transforma em Protagonista, cada homem, cada mulher, em dono de sua voz, inventor do seu futuro! – vamos juntos decidir as leis que queremos e fazer obedecer as boas leis que existem, desprezadas.

Essa é a única maneira que tem o cidadão de exercer seu poder, que não se extingue no ato de votar: aí começa!” (trecho do folheto de campanha)

A adornada e teatral campanha de Augusto Boal, que evocava a felicidade, logrou sucesso, e em 1º de Janeiro de 1993, ele tomou posse como vereador da cidade do Rio de Janeiro. Ali iniciava seu novo grande desafio: colocar em prática os pontos de sua proposta, que trazia para o primeiro plano não só as pautas da cultura, mas algo ainda mais fundamental, mecanismos para o exercício de uma verdadeira democracia participativa. Já em retrospecto, no livro “Teatro Legislativo”, Boal fala um pouco mais da importância da forma, indissociável do conteúdo, no que tange uma efetiva prática cidadã. 

A Democracia Direta, ontem falaciosa, hoje é impossível. 

Resta a Democracia Representativa e seu tropeços: o que prometem os candidatos em campanha não é quase nunca a verdade das suas intenções. (…)

(…) Pode-se tentar vias alternativas. Uma é o Teatro Legislativo, forma de política transitiva (aquela que propõe o diálogo, a interação, a troca), como a pedagogia de Paulo Freire e o Teatro do Oprimido. Somos todos sujeitos: alunos e professores, cidadãos e espectadores.

É preciso que o povo participe, mas… como organizar essa participação sem demagogia?

Estamos inventando uma estrutura. Por enquanto, no quarto ano do nosso Mandato, ao invés de nos dirigirmos à cidadania “em geral” – como nos comícios -, estamos nos dirigindo a pequenas unidades orgânicas: indivíduos unidos por necessidade essencial – professores, idosos, operários, estudantes, camponeses, empregadas domesticas, estudantes negros… – e não apenas pelo acaso como os espetáculos de rua. Estes grupos podem se organizar em dois níveis: Núcleos e Elos, que estão sendo criados em uma sociedade real, e não no papel timbrado.

(…)

E com a cidadania assim organizada, estamos tentando compreender, nós mesmos, o que poderá vir a ser um dia o TEATRO COMO DEMOCRACIA TRANSITIVA.”  (p. 48 e 49)

O que seguiu foi um mandato de muito trabalho e lutas diárias, no contexto de um Rio de Janeiro cenário de graves violações contra parte de sua própria população (para citar poucos exemplos, no início dos anos 90, o Rio sofreu ao menos 3 grandes chacinas: Acari, Vigário Geral e Calendária), cuja intenção era persistir, tentando não se deixar intimidar por quem não queria (e continua sem querer) ver o povo reconhecer sua própria voz.  

No fim de 1994, o governo federal, resolveu uma intervenção branca no Rio de Janeiro para acabar com a violência. O exercito entrou em ação, encenando invasões nos morros onde se escondem os narcotraficantes de terceiro escalão (os do primeiro vivem distantes da miséria das favelas, até distantes do Brasil…). A repentina repressão veio braba: prisões arbitrárias, espancamentos.

Uma comissão de vereadores foi conversar com o general-chefe dessa “Operação Rio” e pedir explicações, protestando contra a forma desordenada e violenta que a intervenção estava assumindo. O general, depois de longa conferencia sobre estratégia, disse que os “bandidos não tem domicilio fixo nem marca no corpo”, e, por isso, ele era obrigado a invadir favelas e prender suspeitos. Perguntei porque, então, só invadia favelas (isto é, domicílio fixo…) e apenas prendia negros (marcas no corpo). Respondeu: – “Se vocês querem que eu acabe com a violência, não posso prometer cumprir a lei…”

 (…) A violência continuou a mesma.” (p. 53 e 54)

Semelhanças com o Rio de Janeiro de hoje não são meras coincidências. A descrição de Boal a respeito da cidade que ele representava à época na câmara municipal nos faz refletir: que projeto político de cidade e de país continuamos a construir? 

    

(Material da Campanha para vereador)

 

(O trabalho estabelecido durante o mandato de Boal será explorado em maior detalhe em um próximo artigo.)