Augusto Boal

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Três notas sobre a Revolução

24.09.2018

No contexto do ciclo DRAMATURGIAS organizado pelo Sesc Ipiranga Sp, no sábado 1 de setembro foi realizada a leitura dramatizada do texto de Augusto Boal, “Revolução na América do Sul”.
A leitura foi dirigida por Marco Antonio Rodrigues com Chico Carvalho no papel de Zé da Silva.
Peça emblemática dos anos 60, gestada no Seminário de dramaturgia do teatro Arena, o texto conserva uma impressionante atualidade.
O objetivo do Instituto Augusto Boal ao organizar este breve ciclo foi precisamente esse: conferir se essas pecas históricas do Arena ainda tinham alguma validade, se ainda poderiam dialogar com o publico de hoje.
Para tal, convidamos também jovens dramaturgos e dramaturgas contemporâneos que comentaram os textos e conduziram os debates.
No caso de Revolução o nosso convidado foi o dramaturgo Marcos Barbosa, autor de Curral grande. É dele o texto que aqui apresentamos:

“Três notas avulsas para uma leitura de “A Revolução na América do Sul’, de Augusto Boal.

#1
Corria o ano de 1960, quando estreou em São Paulo “A revolução na América do Sul”, de Augusto Boal. Nos cinco anos anteriores, a dramaturgia brasileira já havia dado à luz textos do quilate de “O auto da Compadecida” (Suassuna), “Eles não usam black-tie” (Guarnieri), “Barrela” (P. Marcos), “Vereda da salvação” (J. Andrade), “Chapetuba futebol clube” (Vianinha), “Boca de Ouro” (Nélson) e “O pagador de promessas” (D. Gomes). O saldo da lista é claro e não comporta panos quentes: no mais de meio século que correu desde então, não fomos capazes de produzir um conjunto de textos cuja consistência bastasse sequer para sombrear os pés do que se fez naquela meia década.
A fulgurância de um tempo de grandes invenções não é nem pode ser um jorro sem ponto final. Não se produz, a qualquer hora, por encomenda ou por decreto, um século de Péricles, uma Renascença ou uma seleção de 58. Mas, para os que não se limitam a chora-lo, o leite derramado da dramaturgia brasileira dos 50-60 deixa um rastro que merece ser seguido e, por onde quer que eu examine a questão, acabo sempre chegando a um tema central: de Boal a Suassuna, de Vianinha a Nélson, de Plínio Marques a Jorge Andrade, corre a veia unificada de uma fieira de peças das quais se desprende um profundo exercício de fé. Fé na palavra, fé no teatro como lugar de encontro, fé na complexidade da vida humana. Se, por matizes estéticos ou de partido, eventualmente se opuseram como indivíduos, o fato é que aqueles dramaturgos se reuniram todos na proposição de um teatro comprometido (porque implicado) na construção do mundo, de nossas relações com o mundo.
Penso numa metáfora tantas vezes repetida por Boal, a do teatro como espelho. Não qualquer espelho, mas um espelho mágico, através do qual podemos nos ver e, quando indignados com o que vemos, podemos nos reformar. Quando, como leitores, espectadores e cidadãos, pudermos voltar a de fato nos ver na dramaturgia brasileira, no teatro brasileiro, talvez possamos, outra vez, divisar novamente uma estrada mais luminosa para a dramaturgia brasileira.

#2
Não parece faltar nada a “A Revolução na América do Sul”, texto de Augusto Boal, para associa-lo ao jargão do Teatro Épico de Bertolt Brecht: canções, coro, narrações, engajamento, estranhamento, dialética… De fato, foi por essa vinculação que a maior parte da crítica brasileira escolheu compreender “A Revolução…”. Uma das maiores medalhas da peça seria sua primazia na configuração nacional de um projeto dramatúrgico brechtiano.
Nunca aceitei de modo muito pacífico essa associação. Não porque encontre nela algum furo significativo de argumento, mas porque entendo que ela rouba à nossa atenção aspectos muito mais importantes do trabalho de Boal. Ao planejar “A Revolução…”, Boal não parecia ter em mente parir um rebento brechtiano. Sua causa era mais radical e muito mais nobre: Boal queria pôr em cena (a partir de um texto de viés acidamente político) um espetáculo de palhaços e só não foi mais adiante no projeto por ter antevisto a fúria da censura ao ver no palco, devidamente caracterizados com o nariz vermelho, políticos, industriais, líderes populares e delegados do Tio Sam. Em sua autobiografia, Boal dará um testemunho associado a esse evento: “Brecht nos tinha influenciado, mais no sentido de nos libertarmos do naturalismo que no de imita-lo: o efeito de afastamento, para nós, já existia na interpretação de nossos palhaços.”
Sou um admirador incansável da obra de Brecht, mas me oponho ao procedimento, agora naturalizado no Brasil, de elogiar autores, companhias, espetáculos ou peças por serem, aos seus modos, brechtianos. Pelo bem do ímpeto crítico, tão cultivado por Brecht, não caberia aos seus admiradores justamente pôr Brecht à prova, contrapor Brecht, para celebra-lo no paradoxo de um embate amoroso? Não seria nossa missão ir além de Brecht e forçar os contornos do projeto do mestre do Berliner Ensemble?
Para mim, o brilho de “A Revolução…” vem mais de sua aproximação com a palhaçaria à brasileira que de seu vínculo brechtiano. Do mesmo modo, o Teatro do Oprimido me parece mais fulgurante quando, deixando de ser brechtiano, alcança, nas palavras de Richard Schechner, “um teatro com o qual Brecht apenas sonhou”.

#3
“Atualmente existe forte tendência para que uma obra seja julgada levando-se demasiado em conta as ideias progressistas ou reacionárias contidas no texto, transformando-se esse no único padrão de excelência ou de inferioridade. (…) Basta que o autor manifeste solidariedade ou simpatia aos negros, aos operários ou à mulher sacrificada para que sua obra seja encarada com seriedade.” É difícil acreditar que Boal tenha escrito essas palavras há mais de meio século, como comentário ao contexto de “A Revolução na América do Sul”. A atualidade da questão é de tirar o fôlego.
Pergunto-me por que Boal, justo ele e justo num momento em que o Arena reinava como o grande baluarte brasileiro de um teatro jovem “a favor do povo”, teria aberto o flanco para uma crítica que só poderia servir de munição contra o Arena. Mas a questão se responde fácil quando se tem em mente a vocação de Boal para o exercício da crítica – crítica de fato, isto é, prática continuada da revisão de si, em meio a duras tomada de decisões e ao chamado para dolorosos, mas necessários, cortes, julgamentos e separações.
Em “A Revolução…”, entendo que Boal realiza pela arte, na arte, uma das grandes missões do pensamento de esquerda: o de pôr à prova também os valores da própria esquerda, pois sem isso não há dialética, não há diálogo, não há via de crescimento possível. No ácido corrosivo da comédia, Boal dissolve não apenas jornalistas, empresários e interventores ianques, mas também o pobre coagido, a mulher explorada, o líder popular pleno de boas intenções; não apenas o projeto imperialista, mas também o sonho de revolução (digo, de “revoluçãozinha”) popular. Quem ousaria repetir o feito?
Ser de esquerda e pôr em cheque as certezas da esquerda é, desde sempre, um problema. Por isso, “A Revolução…” é, hoje, uma peça problema. Por isso, as palavras de Boal acerca da peça seguem sendo, hoje, um grande problema. Mas, justamente por isso, voltar a “A Revolução…” é um exercício de crítica tão importante. Num tempo em que precisamos ter absoluta clareza de ação, precisamos igualmente evitar que a luz de nossos ideais acabe por nos cegar.”

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