Augusto Boal

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Teatro do Oprimido no Fórum Social, 2003

16.03.2018

Há cinco anos Augusto Boal participou do Fórum Social Mundial, em Porto Alegre, e produziu a reflexão “O Teatro do Oprimido no Fórum Social, 2003”. Estamos em semana de Fórum Social novamente, dessa vez em Salvador, e além de compartilhar o texto de Boal, gostaríamos de fazer um convite a participar da programação de amanhã que contará com Diol Mamadou (Senegal), Movimento Sem Teto da Bahia (Bahia), Movimento Popular La Dignidad (Argentina) e Julian Boal em “O Teatro do Oprimido entre África e Latino-América”.

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“Teatro do Oprimido no Fórum Social, 2003

Todas as sociedades humanas se apresentam de forma mais ou menos organizada. Nelas, nós distinguimos certas camadas, possuidoras de certas funções mais ou menos determinadas. Cada camada, cada setor, cada agrupamento social, tem seus limites e suas metas mais ou menos precisos.

Todas as categorias sociais são definidas sempre como sendo “mais ou menos”, porque elas se referem a seres humanos, vivos e reais, e não a elementos químicos, como o oxigênio ou o plutônio, que podem ser purificados em laboratório, afim de que nos tragam, o primeiro, a vida, e o segundo, a morte. Estas são as fundamentais preocupações dos seres humanos: a vida e a morte! Ambas são puras!

Nós não corremos o risco de sermos puros – jamais nos encontraremos em estado de pureza absoluta, por maiores que sejam as nossas penitências, por mais bem intencionados que sejam os nossos corações e as nossas promessas. Seres humanos são, por sua natureza, ganga impura e não ouro nativo, como dizia, em referência à nossa língua, o poeta Olavo Bilac. Pelo menos nisso, eu sou freudiano clássico: somos todos porcos espinhos gregários, que sentimos a necessidade imperiosa de nos abraçarmos, e a fatalidade de nos espetarmos.

Em nossas sociedades, encontramos quase sempre uma forma ou outra de governo. Quase sempre, encontramos a figura de um líder. Quase sempre, encontramos partidos políticos ou, em seu lugar, uma organização aparentada à Máfia, à Cosa Nostra: família de sangue, de armas ou de dólares, que, ao resto do país, impõe seus desejos. Brasileiros que somos, bem conhecemos estas formas de desgoverno.

As sociedades humanas são sempre “quase sempre”, e sempre são “mais ou menos”. Qualquer afirmação peremptória que se faça sobre o ser humano, e sobre as formas que encontra para viver em manadas – prefiro usar o termo manadas, ao invés de cardumes, varas ou rebanhos, porque nas manadas existem maiores tensões sexuais e, por conseqüência, todas as outras tensões de toda ordem, índole ou feitio, que nelas têm sua origem.

Assim somos, gostemos ou não. Somos quase sempre, somos mais ou menos, e somos manadas, com tudo de bom e de mau que isso implica.

Além do líder e dos partidos, existem outras organizações sociais: sindicatos, igrejas, associações de bairro ou profissionais, temáticas, etc. Resumindo: temos líderes, partidos, governos e organizações sociais.

O líder não é sempre do mesmo jeito, líder de uma nota só. Podemos dizer que, em geral, os líderes podem ser de natureza ideológica, patológica ou zoológica!

Líder é, por definição, alguém possuidor de carisma, isto é óbvio! Todos têm que tê-lo: carisma é indispensável.

Carisma é palavra latina que significa dom, e pode ser de natureza divina ou diabólica, ou pode ainda ser apenas um mero conjunto de qualidades excepcionais, bem terrenas. Ou, o que é pior, carisma pode também ter relação com uma doença grave. Diz o Aurélio que, na Idade Média, quando um condenado à morte sofria um ataque epiléptico na hora do enforcamento, era imediatamente perdoado, porque se supunha que tivesse recebido a visita retardada da Graça Divina, in quasi extremis. Graça, como todos sabem, sacode. Bendita doença!

 Feita esta sistematização preliminar de líderes, podemos dizer que um líder ideológico é aquele que incorpora, simboliza e defende idéias claras, bem definidas – e, por isso, nós o seguimos! É aquele que tem posições firmes e que não as trai nunca; aquele em quem podemos confiar, ou aquele que podemos recusar, e dele nos afastar: mas sabemos de quem se trata, e como nos trata.

Líder ideologicamente consistente é aquele que, quando lhe perguntam sobre economia, por exemplo, responde que nosso primeiro dever econômico é matar a fome de cinqüenta milhões. E, quando faz tal afirmação, não se afasta do tema: fala de economia! Economia, para ele, é isso: feijão com arroz na mesa, couve verde, algum torresmo, e quem sabe, um ovo! Isso é a economia.

Um líder patológico, ao contrário, é o camaleão, multicolorido: é aquele que se colore com todas as cores de todos os desejos de todas as pessoas, e jamais exibe a cor da própria pele. É o que ameaça punir ladrões, e rouba à farta! À direita, atira contra a esquerda; á esquerda, contra a direita.

Este tipo de líder tem uma linguagem coerente, porém é coerente com todos os segmentos incoerentes da sociedade. É coerente com a incoerência! Parece que está sempre do nosso lado, mesmo sabendo que vivemos em uma sociedade poligonal – temos ângulos em excesso. Ele se coloca, na verdade, bem no centro de um círculo em que todos os pontos, dele, são eqüidistantes.

O líder zoológico, por sua vez, é uma variante extrema desta fauna. No centro da África, houve um líder zoológico que, a si mesmo, coroou Imperador, como Napoleão Bonaparte, na Catedral de Notre-Dame de Paris, e que realizou a mais nefanda concreção de uma metáfora. Como sabemos, todos os líderes patológicos querem, metaforicamente, devorar seus liderados. Pois não é que esse imperador realizava a façanha de prender em uma cela, bem ao lado da cozinha do palácio, os generais que contra ele conspiravam para, depois de bem alimentados, bem fofos e bem gordinhos, comê-los assados com batata-palha? É a pura verdade, eu não minto nunca! Não é da minha índole! Nesta minha alocução, preferi não citar nomes, por isso não revelo quem era esse imperador canibal: digo apenas, a título indicativo, que, com tanta fome, ele deveria ter uma Bocassa enorme, primeira e única!

Essa, aos trancos e barrancos, é a função do líder: liderar. Nenhum verdadeiro líder, porém, governa solitário – tarefa improvável e impossível para uma só pessoa, seja quem for, ou venha a ser. Por isso, entra em cena o Partido. Alguns partidos, traindo sua missão, renunciam á sua natureza de cadinho, centro de debates, confluências, e se tornam apenas correia de transmissão da voz do líder, obedecendo às suas ordens: isso não é partido, é SS.

O verdadeiro partido deve estar, sempre, em saudável ebulição: nele, devemos ser coerentes com nossas idéias que podem, em certa medida, ser conflitantes. Mas, se nesse partido estamos, ou em partidos irmãos, é porque temos desejos comuns, superiores às nossas divergências. Uns querem andar depressa, outros nem tanto – mas todos querem chegar ao mesmo lugar, ou perto.

Temos desejos comuns, sim, mas como alcançá-los? Qual a melhor via, quais caminhos? Disse o poeta espanhol, Antônio Machado: “O caminho não existe – o caminho quem o faz é o caminhante ao caminhar”. Caminhemos!

Sabemos o que queremos, mas não sabemos como obter o que desejamos: para isso existem os partidos, para que idéias sejam debatidas, examinadas, discutidas, e para que se chegue a propostas e ações – eis a política, e eis o partido. Sua função não é a de trilhar estreitas sendas conhecidas, picadas e pinguelas: é a de abrir alamedas por onde passemos todos! Você tem razão, Antonio Machado, poeta! Vamos nos embrenhar na mata!

O governo de um país, porém, não é apenas o seu líder, nem só o seu partido: o governo governa o país e deve incluir segmentos que fora dele se colocam. Deve levá-los em conta, se de democracia se trata. Levá-los em conta não significa satisfazer todos os seus desejos – impossível! Mas não devemos transformar opressores em oprimidos, e oprimidos em opressores, mantendo a opressão com sinal trocado. Harmonia, até certo ponto e dentro de certos limites, é mais ou menos, é quase sempre, possível – quase sempre, mais ou menos. Caso por caso. Vamos ver.

A sociedade civil, porém, não se reduz ao líder, ao partido e ao governo, mas está inserida no dia a dia da vida real, no coração que bate! Está – sempre e sempre, e não quase sempre! – mais e mais – e não mais ou menos! – não apenas representada, mas corporificada – inteira, viva! – nas organizações que anima. Ânima: alma!

O Fórum Social Mundial de Porto Alegre é um encontro de cidadãos e de organizações cidadãs, que são a alma da sociedade! Não é um encontro de líderes, de partidos ou de governos. O Fórum não tem o compromisso de governar, mas sim o de propor e, quando necessário, exigir.

E onde entra a Arte no Fórum Social Mundial de Porto Alegre? O que iremos nós fazer por lá? Para quê e para quem? Com quem e com o quê?

Primeiro, temos que definir que Arte será essa, porque, em Arte, como em Política, também existem os líderes, os estilos, os grupos e os indivíduos. Nós, que somos do Teatro do Oprimido, somos uma tendência dentro de uma Arte maior do que nós, esta sim, de infinitas tendências contraditórias.

Nós somos aqueles que acreditamos que todo ser humano é artista; que cada ser humano é capaz de fazer tudo aquilo de que um ser humano é capaz. Talvez não façamos tão bem uns como os outros, mas capazes somos de fazer, não melhor do que os outros, mas cada um melhor do que si mesmo. Cada vez mais, e melhor. Eu sou melhor que eu mesmo, sou melhor do que penso, e posso vir a ser melhor do que tenho sido.

Para isso, serve a Arte: acreditamos que o ato de transformar é transformador. Vejam como é claro este meu raciocínio.

Os sons andam todos por aí, rodopiando no espaço, aleatórios, e todos podem ser lembrados, criados e recriados em nossa memória e nossa imaginação: são reais e são imaginados – sendo a imaginação uma outra forma de realidade. Se nós organizamos os sons no tempo, estaremos inventando a Música, pois que a Música é a organização do som e do silêncio, no tempo. E o que são as Artes Plásticas, se não a organização das cores, dos traços e dos volumes, no espaço? E o que é o Teatro, se não a organização das ações humanas, no espaço e no tempo? O artista organiza o mundo segundo a sua percepção subjetiva – esta é a nossa linguagem. Quanto mais fundo penetrar dentro de mim mesmo, mais próximo estarei do Outro.

Vejamos agora o significado da frase “o ato de transformar é transformador”. Se eu transformo a argila, o barro, a areia da praia e, com isso, faço uma estátua, estarei criando uma obra de arte, transformando a realidade. E o fato de transformar a areia em escultura, a mim me transforma em escultor. Agora sou artista. Se organizo os sons que ouço à minha volta, ou aqueles que escuto no meu espírito, e se os ordeno no tempo, escrevo uma partitura; transformo a desordenada realidade sonora em Canção, e o ato de transformar a natureza dos sons, a mim me transforma em compositor.

Se agarro com mão firme as palavras que estão no dicionário, ou correm de boca em boca, se as ordeno do jeito que só eu sei, se as manipulo, alongo, encurto, mudo seu sentido, se transformo palavras, significados e, com elas e eles, escrevo um poema, estarei transformando a realidade dessas palavras, estarei criando poesia, e o ato de transformá-las, a mim me transforma em poeta – aquele que transforma as palavras.

A mesma coisa acontece com o teatro, quando se trata de Teatro-Fórum, Teatro do Oprimido, quando o espectador se transforma em espect-ator, quando invade a cena e cria imagens ideais do que deseja que venha a ser a realidade, o seu real. O espectador entra em cena e transforma as imagens que vê e não ama – ele as transforma em imagens que ama e deseja, imagens de uma sociedade justa, convivial.

E o ato de transformar a realidade, mesmo em imagem, é um ato transformador, pois que a imagem do real é real enquanto imagem! O espectador, invadindo a cena, transforma-se em escultor, em músico, em poeta, em suma, entrando em cena e mostrando, em ação, sua vontade, sendo ator, sendo protagonista, o espectador se transforma em cidadão!

Nós, seres humanos, desde que somos concebidos, necessitamos nos expandir: para dentro e para fora. Para fora, buscando um território que seja maior do que o volume do nosso corpo – a casa, o jardim. Para dentro, a poesia. Todas as poesias. Para fora, a terra firme; para dentro, o saber e a busca.

Em Porto Alegre, vamos discutir a Alca e suas armadilhas, a auditoria da Dívida Externa, a Reforma Agrária Urgente, e o Monopólio do Poder Econômico e Militar por um só país, que nos leva perigosamente para traz, para a década dos trinta, de malfadada memória e holocáusticas conseqüências.

Porém, como somos artistas – e como, alguns de nós, somos românticos! – em Porto Alegre usaremos os elementos da nossa arte, postos à disposição de todos. Estaremos lá trabalhando com camponeses do MST, com habitantes das periferias pobres de algumas cidades, com membros de comunidades excluídas ou vítimas de preconceitos, com oprimidos de todas as categorias, gêneros e feitios.

Como somos artistas, como somos românticos, nós acreditamos naquela frase tão linda do poeta cubano José Marti: “A melhor maneira de se dizer, é fazer!” Ainda mais: ser é fazer e fazer é ser.

Não seremos jamais aquilo que não fizermos: sou padeiro porque faço pão; não sou astronauta porque jamais tirei os pés da terra firme.

Querermos conquistar nossa identidade e nossa cidadania, porém só seremos cidadãos plenos se formos capazes de intervir na nossa sociedade – naquilo que não nos apraz – e transformá-la naquela que desejamos.

Se formos capazes de conquistar nosso território, para dentro e para fora: para fora, dentro de um Brasil liberto; para dentro, externando nossa arte.

Fazer arte não significa apenas tocar violão, cavaquinho ou reco-reco: significa expandir-se. O ser humano é criador, e cada vez que alguma coisa cria, outras criações tornam-se necessárias. Cada uma de suas descobertas, cria a necessidade de outras descobertas; cada invenção pede mais invenções.

No Fórum Social Mundial de Porto Alegre, 2003, fazendo arte, estaremos dizendo o que pensamos, inventando a sociedade que queremos ter, sendo o que queremos ser – nós mesmos.

Augusto Boal

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