Augusto Boal

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Carta de Boal para Marc Silberman sobre Brecht em 1997

16.09.2016

Em 1997 Augusto Boal escreve carta endereçada ao International Brecht Society discutindo pontos importantes de sua leitura e compreensão do trabalho do dramaturgo alemão.

Esta carta, inédita, foi lida por Cecília Boal no Seminário “Que tempos são esses”, realizado no CCBB (Centro Cultural Banco do Brasil) em 2016.

O Instituto Augusto Boal traduziu a carta e a coloca aqui a disposição:

Rio de Janeiro, 13 de agosto de 1997

Caro Marc Silberman,

Lamento não ter mais tempo para escrever mais longamente sobre Bertolt Brecht, como você me pediu . Mas este tem sido um ano particularmente difícil para mim, com muitas viagens ao redor do mundo, muitas oficinas, muitas palestras e demonstrações, além do meu trabalho contínuo aqui no meu próprio país no “Teatro Legislativo” – já conseguimos promulgar 13 leis municipais que surgiram das nossas intervenções com Teatro Fórum. O desejo tornou-se lei!!!

Brecht está e esteve ligado ao meu trabalho em muitos momentos da minha vida, e em muitos aspectos importantes.

Curiosamente, eu comecei a minha carreira profissional como diretor de teatro no mesmo ano (e quase no mesmo mês) em que ele morreu. A primeira das suas peças que dirigi foi “A Exceção e a Regra”, com os trabalhadores de uma organização sindical que não eram atores profissionais – e desde então, tenho trabalhado muitas vezes com não-atores, além de meu trabalho profissional com atores profissionais nos teatros oficiais.

O segundo, “A ascensão resistível de Arturo Ui”, foi a última peça que eu dirigi no Brasil antes de ser preso e mais tarde forçado ao exílio. Nós não podíamos produzir nossas próprias peças sobre o nosso próprio país e Brecht era um nome suficientemente prestigioso como para obrigar a censura à permitir que suas peças fossem encenadas. Queríamos denunciar o que estava acontecendo no Brasil e “Ui” era perfeito para esse efeito. Eu estava saindo do teatro uma noite, depois de um ensaio , quando fui sequestrado pela polícia secreta. A ascensão de nossos próprios Arturos era resistível, mas naquela época nós não conseguimos resistir …

Quando eu estava exilado na Argentina, lembrei de um de seus poemas em que uma velha vai a um supermercado, pega tudo o que precisa (pão, queijo, manteiga …) e, sabendo que ela não tem dinheiro para pagar essas mercadorias, coloca tudo de volta nas prateleiras dizendo, que afinal , ela não precisa de nada. O poema continua e o poeta sugere que ela não deveria ter feito isso: ao contrário, ela deveria ter ido até o caixa e exposto o seu problema – ela não tinha trabalho, não tinha nenhuma pensão, tinha apenas fome e precisava comer. O que poderia ser feito?

Esse poema nos inspirou e , na Bélgica, encenamos a mesma situação usando a técnica do “teatro invisível” – um jovem ator desempenhou o papel de um jovem desempregado enquanto outros atores ficavam em pé na fila com as suas próprias compras discutindo com o protagonista e com os outros clientes, que não sabiam que era “teatro invisível”.

E é claro , todas as pessoas no supermercado participaram intensamente na discussão sobre o desemprego, os salários, a fome… Sem saber que era teatro.

Muitos anos depois, quando eu estava vivendo em Paris onde criei meu primeiro “Centro de Teatro do Oprimido”, estávamos preparando um espetáculo para um festival de peças de Teatro Fórum , que são em geral peças curtas. Neste tipo de teatro, o espectador torna-se espect-ator , a peça ou modelo é apresentada uma primeira vez, e na segunda vez ele ou ela podem intervir e improvisar suas próprias soluções e alternativas. Queríamos apresentar peças de autores conhecidos preocupados com questões políticas e sociais e, é claro, eu me lembrei de Brecht, da sua peça “Aquele que diz sim e   aquele que diz não ” que também mostra que as soluções têm que ser encontradas . Mas, ao invés disso, nós fizemos “A esposa judia” exatamente como Brecht a tinha escrito, acrescentando apenas a presença em cena de todos os personagens com quem a protagonista fala no telefone. Na primeira apresentação, os personagens ficavam mudos, mas, a partir da segunda vez , ou seja da repetição do modelo, os espect-atores que desejavam substituir a esposa tinham o direito de improvisar com eles.

Utilizamos esta peça escrita na Alemanha antes da guerra, para discutir o racismo na França, muitas décadas depois.

Além destas utilizações práticas de Brecht ele funciona na teoria e ele influenciou muitas das minhas primeiras peças dos anos 50 e do início dos anos 60. Foi quando ele e Stanislavsky foram minhas principais fontes de inspiração teatral.

Desejo que o seu livro seja extremamente útil para todos os leitores IT’S.

Muito sinceramente,

Augusto Boal

Créditos: International Brecht Institute

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