Augusto Boal

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Teatro do Oprimido: da relação com a estratégia política aos riscos da mercantilização

28.02.2015

por Rafael Villas Bôas

Professor da UnB, coordenador do Coletivo Terra em Cena e do grupo de pesquisa Modos de Produção e Antagonismos Sociais

De tudo que se possa dizer de Augusto Boal, talvez uma das inegáveis e menos polêmicas afirmações seja a de que ele foi um homem disposto a correr riscos e a aprender com as derrotas. Imbuído do espírito dialético que cabe a um homem de esquerda e da disciplina metodológica que talvez tenha aprendido da Química, sua primeira profissão, Boal soube dar respostas críticas às derrotas que o lado que optou por lutar sofreu ao longo de seu tempo histórico.
A formulação do Teatro do Oprimido pode ser entendida como uma resposta às rupturas e traumas que a ditatura civil-militar impôs ao Brasil em 1964. Uma tentativa de ativar uma metodologia de formação revolucionária, cujo estopim é a experiência de exploração dos oprimidos, visando a construção do poder popular. Isso num contexto de vitória da contrarrevolução!
Boal manteve, portanto, seu trabalho em rota de radicalização permanente, mesmo quando o horizonte revolucionário tinha se fechado e a realidade empurrava seus colegas de ofício para a indústria cultural. A maioria foi trabalhar na Globo.
Luta política e artística se faz de opções. Sempre. Esse é o legado de Boal, de Cecília Thumin Boal, de Julian Boal, e daqueles que se dispõem a farejar os rumos políticos de uma ação contra-hegemônica no presente.
O Teatro do Oprimido, hoje em dia, tem muitos desafios se quiser seguir os rumos abertos por quem o construiu. Ele pode procurar sempre pelos sujeitos coletivos que organizam movimentos e processos de contestaçao da ordem, e se tornar um elemento importante para a estratégia dessas organizações, como ocorreu com o MST ao se apropriar da metodologia do Teatro do Oprimido e multiplicá-la amplamente por acampamentos e assentamentos em todo o território nacional. Ou, ele pode se adequar às necessidades de sobrevivência daqueles que optaram por trabalhar com o método. Não há problema nisso, é legitimo, mas há riscos, muitos, e precisamos ter total consciência deles, caso não queiramos descarrilhar o trem. Seguem alguns deles:

  • as necessidades de sobrevivência não podem transformar o Teatro do Oprimido em um negócio, em um pacote de serviços ofertado com promessas de resultados ao final do processo;
  • o processo de formação não pode ser reduzido e tratado como sinônimo de capacitação. Não se trata de um treinamento, de um aperfeiçoamento, se trata de um trabalho em que o indivíduo faz parte do sujeito coletivo e se coloca como mediador dessa relação. Mas, isso não existe de antemão: é preciso que ambas as partes compartilhem do sentido de construção de um projeto comum, em disputa com o projeto hegemônico, de sociedade, de país. Sem isso, muito da proposta se perde;
  • a perspectiva emancipatória não pode ser conquistada de forma individual, logo, Teatro do Oprimido não é uma promessa de melhoria da vida pessoal, de libertação individual dos grilhões que o sistema nos impõe.

Quando perdemos essas questões de vista, o Teatro do Oprimido passa a se apresentar como um conjunto de métodos, agrupados por jogos e exercícios, em categorias, como outras tantas correntes metodológicas do teatro. E a dinâmica do Teatro Fórum passa a ser uma espécie de jogo de ganha e perde, e não um exercício dialético de estudo das contradições da realidade, por um público interessado em estuda-la para intervir nela, lutar e transformar as condições objetivas do real.
Sou professor de teatro e vivencio a cada turma de professores do campo, formada com habilitação em Linguagens, a experiência de perceber duas formas de entendimento sobre o trabalho teatral. Aqueles que compreendem as ligações orgânicas entre formação estética e política e organização social vão se empenhar diretamente na construção de experiências contra-hegemônicas de construção do poder popular, por dentro e por fora da sala de aula, se esforçando por retomar aquele sentido primeiro que Boal quis conferir ao Teatro do Oprimido.
Por outro lado, os que se apropriam da linguagem como, exclusivamente, um método teatral, poderão sem dúvida se tornar competentes professores e oficineiros da técnica, entretanto, o que ocorre com frequência é que a técnica pela técnica se torna um repertório sem alma, sem horizonte, logo, os riscos de mercantilização ou infantilização de uma proposta complexa se tornam muito grandes. No limite, sem preocupação com a estratégia política à qual o teatro político se vincula, voltada sempre para o fortalecimento do poder popular em perspectiva socialista, o Teatro do Oprimido pode e tem se tornado muita coisa dentro do que é possível quando empacotamos o teatro como um negócio: um método de auto-ajuda, uma oportunidade de capacitação profissional, uma diversificação do repertório de dinâmicas de profissionais que procuram ser interativos, um momento interessante na vida das pessoas, que permite interações, no momento da oficina ou curso, mas que não tem saldo organizativo posterior, etc.
Em época como a em que vivemos, em que a Indústria Cultural se antecipa ao rotular os fenômenos sociais com potencial contra-hegemônico, buscando sempre uma forma de administrar de forma mercantil as contradições sociais decorrentes que um sistema econômico e político que sobrevive da superexploraçao da força de trabalho e da degradação em larga escala da natureza, convém rememorarmos os pioneiros do teatro político, como Erwin Piscator, que dizia que “a missão do teatro revolucionário consiste em tomar como ponto de partida a realidade, e elevar a discrepância social a elemento de acusação, da subversão da nova ordem”.

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