Augusto Boal

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3 ou 4 Perguntas Para Um Bom Fórum

30.10.2011

O encontro de Porto Alegre foi extremamente mobilizador e suscitou o desejo de contribuir para o debate. A seguir, um texto enviado por Silvia Balestreri, organizadora do encontro.

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3 OU 4 PERGUNTAS PARA UM BOM FÓRUM

Silvia Balestreri Nunes1

Uma das modalidades mais utilizadas do teatro do oprimido no mundo todo – o teatro-fórum – é veículo de ativação e mobilização não apenas na hora de ser apresentado e de se convidar a platéia a intervir na cena – quando ela toma o lugar do(s) protagonista(s) para propor alternativas à situação mostrada, mas principalmente durante o processo de criação e montagem da peça. Os participantes-atores têm que se defrontar com uma série de questões para chegarem a construir o que chamamos um bom modelo para fórum – a peça propriamente dita. Cabe ao curinga sensibilidade para conduzir o grupo por tais questões: ainda que não sejam formuladas explicitamente, a resposta a elas terá efeitos sobre a qualidade do fórum, sobre a relação dos participantes entre si e sobre sua relação dali por diante com o tema e os problemas tratados.

 

Uma primeira pergunta com que cada um dos participantes da construção de um fórum tem que se defrontar, uma vez escolhido o tema, é:

Qual a opressão de vocês em relação a esse tema?

Quanto mais cheios de vida forem esses relatos, mais material se terá para criar os personagens e a cena. Um bom curinga já estará aí sendo atingido em sua sensibilidade, o que o ajudará bastante a conduzir o resto do processo: estará sensível às contradições, aos incômodos, à importância para cada um daquilo que está contando de si. Quando comecei a curingar, tinha muito receio de ser diretiva e acabava me omitindo de interferir em importantes momentos do processo. Só com o tempo descobri que, para dirigir e curingar, é preciso interferir, mas sempre de modo a não “atropelar” e a facilitar o movimento dos participantes, estando inclusive aberta a “dar ouvidos” às impressões que seus relatos e jogos de improviso suscitam em mim. Com essa primeira pergunta – “qual a opressão de cada um em relação ao tema?” – , inicia-se, de forma mais detida, um compartilhar de experiências, um movimento de coletivizar o que até então era vivido individualmente – início de uma verdadeira formação de grupo. “Grupo é ato” 2, ou seja, só começa a acontecer quando, p. ex., um conjunto de pessoas se move na direção de um mesmo objetivo. Um importante passo para isso é as pessoas compartilharem e encontrarem o que é comum no que costumam viver como “problema pessoal”. O fórum pode propiciar esse belo movimento, que é, a meu ver, dos mais importantes presentes na construção do modelo e cuja apresentação e discussão com uma platéia é apenas uma espécie de clímax dessa coletivização dos problemas e da procura, em conjunto, de sua solução.

 

Uma outra pergunta, após a narrativa das queixas e opressões, necessária para que se esboce melhor quem será o protagonista e pelo que ele lutará em cena, é:

 

O que vocês querem em relação a tudo o que foi colocado?

O que querem em relação às opressões, problemas e insatisfações que apontaram? Esse é um momento riquíssimo, em que, muitas vezes, o curinga acaba promovendo uma verdadeira “quebra” nas posturas anteriores (dependendo, é claro, do grupo e do tema em questão). É como se estivesse dizendo: “Tudo bem, entendi tudo de que vocês se queixam, mas o que querem? Pelo que querem lutar? Como gostariam que fosse?”Não há aí nenhum convite à idealização de uma situação inalcançável, mas uma pergunta sincera sobre o modo como pretendem dizer “não” a uma realidade opressiva. Em algumas situações, é difícil de responder, mas é fundamental para o grupo se defrontar até com a dificuldade de traçar rumos em determinados casos. Lembro-me de um fórum sobre relações amorosas nos dias de hoje, realizado por estudantes de psicologia. O primeiro momento, de compartilharem suas experiências sobre o tema foi relativamente fácil: falar da crise do casamento ou da atual mudança nas relações e no amor. “Sim, e o que vocês querem?”, perguntei depois. “O que vocês querem quanto a essas questões?” A simples colocação da pergunta já põe o grupo numa posição diferente: a de sair da lamentação e da passividade para uma posição ativa – essencial para fazer um bom fórum e para uma postura positiva na vida. Os atores precisam saber o que estão querendo discutir com a peça e ter uma noção do que querem conseguir quanto ao “problema” analisado, para poderem definir o que o protagonista do fórum quer e pelo que ele luta – ou mesmo quantos “protagonistas” haverá na cena.

 

Uma vez esclarecido, na medida do possível, o que o grupo quer, ajudando a delinear um ou mais protagonistas para a cena, é hora de se perguntarem:

 

O que atrapalha vocês de conseguirem o que querem?

Daí surgirá material para a construção dos antagonistas e de momentos importantes da peça. Às vezes, “o que atrapalha” é um tipo de organização social ou hierarquia, um modo de alguém falar, um tipo de relação em que se está enredado, ou mesmo uma culpa ou cobrança internalizados que impedem cada um de se mover. Neste caso, quando a própria pessoa é veículo de sua opressão, certamente está recorrendo a um tipo de censura e de repertório de culpabilização que está disponível no social: algo que é seu próprio pensamento e autocobrança (próximo ao que Boal chama os “tiras na cabeça”) pode, por exemplo, ser colocado na boca e na ação de um dos personagens antagonistas. O mais importante será que o protagonista ou outro personagem oprimido e as platéias do fórum tenham que se defrontar com isso, perguntando-se o que fazer com tais mecanismos e experimentando alternativas.

Já terá sido bastante valioso um processo em que um conjunto de pessoas tem que “encarar” sinceramente cada uma das perguntas anteriores. E o fórum, como todo bom teatro, não funciona bem com “mentiras”. Esse não é um processo exaustivo, os participantes devem falar de si apenas o suficiente para se fazerem ouvir, isto é, para que a cena seja o resultado de um trabalho verdadeiramente coletivo, para que tenha vitalidade nas coisas que afirma e que pergunta. Os participantes devem falar o suficiente para afetarem e serem afetados em sua sensibilidade, de modo a terem bom material para os jogos de improvisação e para a criação de personagens e diálogos. Lembro-me de um fórum, também entre alunos de psicologia, em que estes queriam discorrer sobre drogas e homossexualidade. Só para citar a situação mais simples ocorrida, havia no grupo tanto pessoas que já tinham experimentado diferentes tipos das chamadas “drogas ilícitas”, quanto pessoas que sequer se sentiam à vontade para falar sobre o assunto. A peça acabou girando sobre o preconceito, seja de que lado fosse, com lugar para diferentes tipos de personagens e posturas.

 

Apesar de já muito proveitoso o processo até aqui, uma pergunta fundamental para a criação da cena precisará ser respondida, pergunta que, como as demais, pode produzir interessantes ressonâncias na postura e na vida dos participantes:

 

Quais as saídas para o que vocês estão colocando?

Por onde é possível vislumbrar alguma transformação?

 

O grupo precisa acreditar que há saídas, senão não haverá o que buscar junto às platéias. Essa é uma garantia de que não se fará um fórum fatalista, o que não passaria de um “anti-fórum”. Certa vez, dirigindo sindicalistas demitidos por sua militância, no interior de Minas Gerais, quase acreditei, num primeiro momento, que não haveria saídas para a opressão que viviam, tal era o teor de seus relatos. Mas o fato de estarmos ali reunidos para realizar um fórum era o melhor sinal de que queriam fazer algo com aquilo e que era um primeiro indicador de que poderia haver saídas. As respostas e mesmo as dificuldades de se responder a essa pergunta apontam os caminhos do fórum: saber qual situação deverá ser encenada para tratar da opressão em pauta é reconhecer por onde é possível começar uma efetiva transformação do que se está denunciando. Essas “saídas” serão insinuadas no modelo, ainda que o protagonista não seja bem sucedido ao buscálas.

 

Talvez essas sejam algumas razões para tanta popularidade do teatro-fórum. Para fazer uma boa peça, o grupo se confronta com questões que reviram qualquer possibilidade de postura cristalizada, desencadeia-se um processo que aponta o tempo todo para o coletivo e cuja coroação serão os debates teatrais – as sessões de teatrofórum – engendrados com as diferentes platéias. Vale lembrar que tais perguntas nem sempre precisam ser explicitamente colocadas pelo curinga, mas elas estão implícitas e os participantes são o tempo todo convidados a fazer sua travessia até chegarem à peça. É uma forma riquíssima de se trabalhar e mesmo de se formar um grupo; estão incluídos aí o humor, o fazer artístico e a busca de transformação social. Quem quer mais?

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1 Professora do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde trabalha com o teatro do oprimido em disciplina, pesquisa e estágio. Participou do Plano Piloto da Fábrica de Teatro Popular e da primeira formação do CTO-Rio.

2 Concepção inspirada em Sartre. Ver o livro de Georges Lapassade:  Grupos, organizações e instituições.

 

Publicado em METAXIS – A Revista do Teatro do Oprimido.

Ano I, nº I, dez 2001. p. 26 e 27 , quando a autora era Professora do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

 

Atualmente é professora do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas e do Departamento de Arte Dramática da UFRGS, onde leciona Teatro do Oprimido I (Teatro Fórum) e Teatro do Oprimido II (Teatro Invisível e iniciação à formação de curingas).