Augusto Boal

Blog

Agitprop e Teatro do Oprimido – texto de Iná Camargo Costa

15.03.2017

Iná Camargo Costa, pesquisadora teatral, escreve este texto a pedido de Julian Boal.  Agradecemos a gentileza de ter nos permitido a publicação neste blog.
AGITPROP E TEATRO DO OPRIMIDO
Iná Camargo Costa[1] 
Introdução
Como arma na moderna luta de classes, o agitprop já tem uma história mais do que centenária segundo o recorte aqui adotado, pois teve início quando as organizações dos trabalhadores europeus – socialistas, anarquistas, trabalhistas – e depois latinoamericanos incluíram as atividades culturais em suas pautas de intervenção, sendo o teatro, por suas características de atividade pública, a que tem maior número de referências em todo o mundo. A partir do final dos anos 1960 e início dos anos 1970, Augusto Boal começou a escrever um dos capítulos latinoamericanos do agitprop e dedicou a vida inteira a desenvolver este trabalho.
O Teatro do Oprimido tem todo o direito de ser considerado um capítulo latinoamericano desta história pelas condições em que foi criado e depois teve sua elaboração teórica formulada por Augusto Boal: no exílio que começou pela Argentina e onde seu livro de mesmo nome foi publicado pela primeira vez, as circunstâncias em que se desenvolveu a proposta – principalmente do teatro fórum – foram dadas pela situação das lutas sociais e políticas latinoamericanas, como ele mesmo relata em diferentes ocasiões.
Para entender a família do agitprop que o Teatro do Oprimido integra, é preciso recapitular pelo menos o momento em que foram criadas, experimentadas ou desenvolvidas as suas formas mais conhecidas, bem como a própria palavra, que corresponde à fusão entre agitação e propaganda. Estamos obviamente nos referindo à Revolução de Outubro de 1917. A exemplo do que faziam todos os exércitos na Primeira Guerra mundial, o Comandante do Exército Vermelho, Leon Trotsky, convocou artistas e profissionais de todas as áreas para cuidar da vida cultural dos soldados e os que se dedicaram ao teatro foram responsáveis pela invenção ou reinvenção das formas teatrais de agitprop mais conhecidas até hoje.
Para refrescar a memória, vale a pena ao menos enumerar algumas das formas do teatro de agitprop que ajudam a entender o capítulo escrito por Augusto Boal.

Processo de agitação
O desafio do Exército Vermelho era treinar seus próprios soldados para a instauração de processos efetivos de julgamento imediato de companheiros que praticassem atos inaceitáveis por um exército revolucionário. Criado no calor do combate à contrarrevolução, o Exército Vermelho pautou-se desde o início pela democratização das relações entre soldados e comando (sem porém cair no democratismo demagógico da eleição de oficiais), de modo que muito cedo definiu-se a necessidade de julgar delitos militares pelos próprios soldados, no ato da denúncia, dispensando-se a burocracia que envolve a instalação de cortes marciais convencionais (restritas ao alto comando em exércitos regulares).
Para quem não tem intimidade com assuntos militares, é interessante lembrar que qualquer exército dispõe de rígido sistema de regras definindo condutas e infrações sujeitas a vários tipos de sanções. Os casos graves de quebra de hierarquia, disciplina ou de regulamento costumam ser julgados em tribunais chamados de Corte Marcial. Como não poderia ser diferente, o Exército Vermelho também precisou criar regulamentos que definiam os atos contrários à ordem revolucionária, mas inovou também no que diz respeito às instâncias de julgamento de atos de quebra dos regulamentos.
Em texto de 23 de abril de 1919[2], o Comandante do Exército Vermelho desenvolveu, entre outros, os seguintes tópicos (não reproduzidos na íntegra):
1) O senso de justiça revolucionária se forja na própria luta. Por isso não pode ser previamente codificado. Um mesmo ato tem diferentes significados em diferentes momentos ou situações e o tribunal revolucionário é sempre um instrumento de defesa das conquistas e dos interesses da revolução em condições transitórias.
2) A justiça revolucionária, incluída a militar, não usa a máscara dos direitos iguais para todos (que não existem nem podem existir numa sociedade de classes). A justiça revolucionária se proclama abertamente um órgão da luta da classe trabalhadora contra seus inimigos burgueses, por um lado e, por outro, contra os violadores da disciplina e da solidariedade nas fileiras da própria classe trabalhadora. Justamente por ter se livrado da hipocrisia da antiga, a nossa justiça assumiu uma importância educativa imensa.
3) O tribunal revolucionário deve ter ideia clara da sua importância e assegurar que sua decisão, além de punir um ato específico, contribua para a educação revolucionária. É por isto que a formulação da sentença tem importância máxima. Os nossos tribunais, inclusive os militares, são constituídos por operários e camponeses que, via de regra, fazem muito bem o trabalho e formulam sentenças inteiramente de acordo com os interesses da revolução. Mas não têm educação formal e por consequência redigem as sentenças de modo imperfeito e às vezes completamente desastrado. É necessário que, ao redigir a sentença, o júri tenha em mente não apenas o caso, mas a ampla massa de soldados, operários e camponeses. Uma sentença deve ter caráter de agitação: ela deve ao mesmo tempo dissuadir uns e estimular a confiança e a coragem em outros.
Há ainda – no mesmo texto – um contraexemplo muito esclarecedor. Um tribunal militar condenou à prisão um desertor reincidente até que a ação do exército inimigo fosse liquidada. Isto não é punição, é prêmio, observa o Comandante. Uma vez que o objetivo do desertor é fugir do perigo, condená-lo a prisão até que passe este perigo constitui incentivo direto aos covardes e oportunistas. Mas ainda assim ele acrescenta: na hipótese de haver circunstâncias excepcionais que justificassem tal sentença, elas precisariam ser claramente formuladas.
Dentre as medidas tomadas para sanar as deficiências de formação dos integrantes do Exército Vermelho, computam-se as seguintes: organização de 3.800 escolas para alfabetização dos soldados, inclusive nos fronts; criação de 1.315 clubes e 2.392 bibliotecas ambulantes (até dezembro de 1919). E, das diretrizes práticas, vale destacar as seguintes: devemos usar sempre linguagem simples, lutar por clareza e verdadeira interlocução; evitar sobretudo discussões metafísicas, pois o soldado precisa de educação militar e cultural.
Finalmente, para o treinamento dos soldados – todos – com vistas à participação em tribunais ad hoc, foi inventada pelos artistas de teatro (entre outros, Meyerhold e Eisenstein) a forma do “Processo de agitação”, como resumido abaixo. O exemplo dado pelo Comandante está entre os mais elementares: um soldado apanhado em pleno delito de venda da sua arma deveria ser imediatamente julgado e submetido às penas previstas no código revolucionário, que iam da prestação de serviços à unidade (rebaixamento) à execução imediata (após o julgamento).
O Processo de Agitação é a encenação de um tribunal, no qual réu, promotor, defensor e juiz fazem parte do elenco e as testemunhas e o júri são convidados da plateia. O ponto de partida é um crime imaginário. A tarefa do promotor é especificá-lo, a do defensor é apresentar os argumentos em defesa do réu. A partir deste instante, começam as improvisações, que incluem participação de membros da plateia dispostos a figurar como testemunhas.
Para além do treinamento dos soldados para a participação nos tribunais ad hoc, o objetivo mais geral do processo de agitação, inspirado na experiência de 1905, quando o soviete desempenhou funções de tribunal de pequenas causas, é o treinamento da população como um todo para a participação na construção do poder soviético, uma vez que a assistência é convidada a examinar casos, opinar sobre ações de interesse geral, a falar em público e a votar com conhecimento de causa.
Teatro jornal
Originalmente era apenas leitura de jornal em voz alta, dado o número elevado de analfabetos. Num segundo momento, atores profissionais passaram a realizar essas leituras. Finalmente, chegou-se à forma mundialmente conhecida, na qual encena-se uma edição completa de jornal com todas as suas seções, do editorial à crônica literária. Tendo por objetivo prioritário a informação e a agitação, esta foi a forma por excelência do agitprop durante a guerra civil.
 
Peça de agitação
Peças curtas (10 a 15 minutos) centradas num único tópico. Seus “personagens” são funções sociais. O figurino é constituído por uma roupa básica e adereços simples como chapéus e símbolos (de países, classes sociais, etc.). Normalmente dispensa adereços de cena ou usa no máximo bancos, caixotes e objetos de fácil transporte.
Por sua agilidade, esta forma se prestou basicamente à agitação de questões da ordem do dia. Servia para ilustrar propostas em debate, numa assembleia de sindicato, por exemplo, ou para divulgar as questões de urgência em qualquer lugar, inclusive na rua.
Peças dialéticas
Iluminam sem resolver conflitos da vida privada, profissional ou política pelo critério da oposição velho (capitalismo)/novo (socialismo). A ligação entre episódios se faz pela lógica interna da situação, ou da argumentação, não necessariamente em ordem cronológica. A cena se desenvolve através de antecipações e digressões – o resultado é uma montagem. Não interessa a psicologia porque o foco são as contradições dos personagens. Após a apresentação, realizam-se debates.
Seu objetivo é mais abertamente didático (no sentido de formação): trata-se de treinar e aprofundar a capacidade de pensar dialeticamente, examinando situações, condicionantes e contradições.
Cenificações
Correspondem a uma espécie de reinvenção do teatro de revista (que existe desde pelo menos o século XVIII). Seu eixo temático é algum acontecimento histórico, como a própria Revolução de Outubro. Outros temas desenvolvidos à época: Comuna de Paris, Revolução Francesa, Guerra Mundial. É a matriz do teatro-documentário, criação de Erwin Piscator que na Alemanha já recebeu o nome de “Revista Vermelha”, pois usa como material documentos de todos os tipos (relatos, discursos, pesquisas) e obras de ficção pré-existentes. A colagem (ou montagem, como depois seria desenvolvida teoricamente por Eisenstein no cinema) é uma de suas técnicas mais utilizadas.
Nos anos revolucionários, estas cenificações foram realizadas principalmente em celebrações festivas, como o próprio aniversário da Revolução de Outubro, tendo por objetivo, portanto, o cultivo da memória. Talvez o exemplo mais conhecido desta modalidade seja a Tomada do Palácio de Inverno, encenada a 7/11/1920 por Ievreinov (uma espécie de “coordenador de direção”), contando com cerca de 15 mil atores, incluídas muitas das pessoas que participaram daquela ação, e cerca de 100 mil “espectadores”.
Luta político-cultural na América Latina
Em diversos países da América Latina, especialmente Argentina e Uruguai (para nos restringirmos aos vizinhos do Brasil), nas primeiras décadas do século XX já se desenvolveram algumas das propostas de teatro político enraizadas no século XIX, mas que também se inspiraram nas notícias que chegavam da revolução soviética. Não sendo este capítulo objeto do presente estudo, limitemo-nos a mencionar dois episódios argentinos: o “Teatro del Pueblo” de Leonidas Barletta, fundado em 1930 em Buenos Aires e Osvaldo Dragún, que começou a escrever para teatro nos anos de 1950 já inspirado em Bertolt Brecht. No Uruguai, existe até hoje em Montevidéu o teatro “El Galpón” que começou suas atividades nos anos de 1940, inspirado nas iniciativas portenhas, e no início dos anos de 1960 desenvolveu um breve diálogo com o Teatro de Arena de São Paulo que foi prontamente inviabilizado pela ditadura brasileira.
Augusto Boal: fontes e experimentos
Embora seja de amplo conhecimento a passagem de Augusto Boal por Nova York em seus anos de formação, é muito recente e ainda inédita a pesquisa de Geo Britto que dá conta dos seus contatos com o teatro propriamente de esquerda dos Estados Unidos. Geo Britto já documentou amplamente o conhecimento que Boal teve tanto das polêmicas novaiorquinas envolvendo a obra de Brecht quanto das propostas de Erwin Piscator para o teatro político (para não falar nada dos artistas-militantes como Langston Hughes, que conheceu pessoalmente).
Seu primeiro experimento brasileiro com uma das formas do agitprop ocorre na condição de dramaturgo com a produção de Revolução na América do Sul em 1960 pelo Teatro de Arena de São Paulo. Do ponto de vista formal e do ponto de vista da encenação, trata-se já de teatro épico (o nome que a geração de Brecht adotou para se referir aos experimentos alemães). Imediatamente após esta experiência, o Teatro de Arena realizou uma outra ainda mais radical. Informados sobre um confronto entre latifundiários e camponeses no Estado de São Paulo, que resultou em prisão de um dos líderes camponeses, integrantes do Arena entrevistaram este líder e, a partir do material recolhido, realizaram algumas pesquisas de campo e em jornais da época para em seguida escrever uma peça chamada Mutirão em Novo Sol, que foi assinada por um coletivo de autores. A versão final foi redigida por Nelson Xavier sob a coordenação de Augusto Boal. Sua estreia deu-se em um congresso de camponeses em Belo Horizonte.
Já se trata de teatro documentário, uma das modalidades do agitprop acima referidas, segundo a versão de Piscator. Por ser na origem obra de um coletivo de autores, e tratar da questão mais grave da iníqua situação socioeconômica do Brasil, que é a concentração da propriedade fundiária, do ponto de vista da dramaturgia Mutirão em Novo Sol é uma das obras politicamente mais avançadas do teatro brasileiro. Mas como permaneceu inédita até 2016, por enquanto não faz parte de nenhuma história do nosso teatro porque, derrotados que fomos em 1964, nossa memória foi devidamente empastelada por canhões e tanques. Nem mesmo Boal inclui este experimento como antecedente do Teatro do Oprimido.
Augusto Boal esteve presente em quase todas as experiências de agitprop que se seguiram ao golpe militar: dirigiu o Show Opinião, claramente um exemplar da modalidade cenificação, cujo roteiro também é obra de um coletivo de autores; produziu Arena canta Bahia, mais ou menos segundo os moldes do Show Opinião; redigiu (em parceria com Gianfrancesco Guarnieri) e dirigiu Arena conta Zumbi e Arena conta Tiradentes, no Teatro de Arena de São Paulo, igualmente exemplares de teatro documentário (ou cenificação), além de ter desenvolvido em parceria com Cecília Boal e Heleny Guariba a nossa versão, de extremo interesse, do Teatro Jornal. Neste caso, sua memória já começa a estabelecer elos com o agitprop, pois declarou em mais de uma oportunidade que a semente do Teatro do Oprimido estava no Teatro Jornal, desenvolvido num momento em que a ditadura já não deixava mais nem mesmo a imprensa convencional noticiar acontecimentos corriqueiros da vida política. Em suas palavras: “acho que o teatro jornal foi a primeira técnica do Teatro do Oprimido que depois se diversificou em outras técnicas por aí afora”. Por último (antes da prisão e do exílio), coordenou uma verdadeira operação de guerrilha teatral conhecida como Primeira feira paulista de opinião.
No exílio foram desenvolvidos os experimentos que resultaram na elaboração do livro Teatro do Oprimido e na volta definitiva ao Brasil em 1986, agora radicado no Rio de Janeiro, Boal deu o último passo no desenvolvimento das técnicas até então experimentadas e chegou à formulação do Teatro legislativo, que claramente aponta para a experiência da constituição dos Conselhos: pode-se dizer que o capítulo final do Teatro do Oprimido completa o ciclo mais relevante do agitprop, que consiste em ensaiar as ações propositivas da revolução proletária. Mas vejamos cada capítulo desta trajetória em seu direito próprio.
Revolução na América do Sul
O reconhecimento de que Revolução na América do Sul tem características de agitprop aconteceu de modo mais ou menos imediato. Uma das cenas da peça expõe a presença do imperialismo na vida cotidiana dos trabalhadores brasileiros e por isso foi incorporada ao repertório dos grupos do Centro Popular de Cultura (CPC) – a nossa agência mais conhecida de agitprop no início dos anos 1960. Esta cena pode ser classificada como peça de agitação, até porque adquiriu vida própria.
Mutirão em novo sol
Como já ficou dito, escrita por um coletivo de autores coordenados por Augusto Boal, e assinada por Nelson Xavier, esta peça mobiliza algumas das modalidades mais relevantes do agitprop. É teatro documentário (ou cenificação), é teatro-jornal, por se tratar de “reportagem” sobre acontecimentos efetivamente ocorridos e, acima de tudo, sua estreia se deu entre seus mais legítimos interlocutores: camponeses organizados na luta pela reforma agrária, em um congresso das Ligas Camponesas. (Esta é uma outra razão do desinteresse por esta peça nas histórias oficiais do teatro no Brasil).
Show Opinião
Depois do golpe militar de 1964, veteranos do CPC, que foi posto na ilegalidade e tiveram sua sede incendiada, se organizaram em um grupo que contou com a colaboração de Augusto Boal em sua primeira produção, o Show Opinião. Trata-se de um caso de cenificação – basicamente escrita por Oduvaldo Vianna Filho, Armando Costa, Ferreira Gullar e outros – que toma como matéria prima a experiência de três artistas envolvidos com a indústria cultural em tempos de contrarrevolução.
Em sua versão final, o Show Opinião apresenta no plano formal o depoimento de diferentes representantes da experiência social no Brasil: a do retirante, a do sambista favelado do morro e a da mulher de classe média. Isto é legítimo teatro documentário. Os três depoimentos (basicamente a história de vida de cada um dos artistas) se desenvolvem através músicas e vários tipos de ilustração (casos exemplares na forma de relatos). Trata, por exemplo, da alienação musical generalizada graças aos bons serviços da indústria cultural controlada pelo imperialismo americano, com paródias geniais de rocks vagabundos. Ou então das razões que levam brasileiros miseráveis a emigrar de seus estados em direção às metrópoles eleitas pelo Capital. Ou das condições de segregação em que vivem os artistas negros no Rio de Janeiro. Os depoimentos são entrelaçados e as músicas dizem muito mais do que o texto falado, como demonstra o sucesso (de mercado!) da canção Carcará na voz de Maria Bethânia, porque falam à imaginação de todo o país. Na condição de diretor da experiência – o destaque é necessário, porque a recepção deste espetáculo adotou o sentido vulgar da palavra show e o “analisa” como tal e não como teatro épico (da modalidade cenificação do agitprop) –, Augusto Boal afirma o seguinte: “O meu esforço ali, na direção, foi convencer os músicos Zé Keti, João do Vale e Nara [depois substituída por Maria Bethânia] – que são cantores – foi convencê-los de que não era um mero show, que era um espetáculo teatral, que eles tinham que produzir diálogo entre eles, seja pela música, seja pelos depoimentos”. Isto quer dizer que o diretor tinha consciência do que fazia, mas nas circunstâncias em que o show foi produzido era muito difícil, senão impossível, desenvolver criticamente, no plano da recepção, um debate produtivo sobre o experimento. O resultado é que ainda hoje (estamos em 2017) não se analisa este espetáculo adequadamente por simples ignorância de sua identidade elementar, salvo raras exceções.
Arena conta Zumbi e Arena Conta Tiradentes
O passo seguinte de Augusto Boal foi o desenvolvimento da experiência com o Show Opinião. Primeiro, temos Arena canta Bahia em 1965, espetáculo que lançou em São Paulo os jovens baianos Caetano Veloso, Gilberto Gil, Tom Zé, Maria Bethânia e Gal Costa, entre outros. Depois disso, com Guarnieri e Edu Lobo, escreve e dirige Arena conta Zumbi, teatro documentário de pesquisa histórica combinado com teatro jornal, pois alguns materiais da imprensa, como discursos de generais ou seus prepostos foram incorporados ao texto. Sem identificar nele as técnicas da colagem e da justaposição, próprias da cenificação, o trabalho fica incompreensível. Em seguida, os mesmos métodos e técnicas resultam em Arena conta Tiradentes, que acrescenta o debate sobre o papel do intelectual tanto no material histórico (o episódio de luta contra a metrópole em Minas Gerais no século XVIII esmagado pelas forças da ordem colonial) quanto na situação presente (ditadura cada vez mais sanguinária). Depois de Arena conta Tiradentes, Boal ainda escreveu Arena conta Bolívar, que permaneceu inédita por muito tempo no Brasil em função da censura oficial.
Feira Paulista de Opinião
Retomando em chave mais ambiciosa o processo desenvolvido em Mutirão em novo sol, Augusto Boal mobilizou vários profissionais do teatro, da música e das artes plásticas para realizar em 1968 um espetáculo-colagem de protesto contra o arbítrio da censura e as violências da ditadura. Trata-se da Primeira feira paulista de opinião, que em si mesmo se transformou num episódio de enfrentamento militante das diversas forças de repressão organizadas. Boal coordenou os trabalhos e contribuiu para o coletivo com uma peça também da modalidade colagem, recorrendo a textos de Fidel Castro, Che Guevara e outros, à qual deu o título A lua muito pequena e a caminhada perigosa. Como Mutirão em novo sol, esta experiência ainda é pouco conhecida no Brasil. Com a publicação em 2016 de um volume com todos os textos, depoimentos dos participantes e a reconstituição de seus episódios principais, esperamos que a situação se modifique.
Teatro Jornal
Historicamente foi a primeira forma do agitprop e sua função prioritária era dar notícia dos rumos da revolução aos próprios revolucionários e simpatizantes, analfabetos em sua maioria. Como as trupes prestavam um serviço à Revolução propriamente dita, seu trabalho tinha caráter necessariamente propositivo e construtivo. Rumos e providências revolucionários eram objeto destas apresentações de jornal ao vivo, mas com o tempo as suas edições passaram a apresentar editoriais – análises dos acontecimentos, resoluções e propostas de intervenção – que deveriam ser objeto de debates posteriores.
Países onde a revolução foi derrotada, como a Alemanha, ou onde ela nem sequer se esboçou, como os Estados Unidos, adotaram esta forma tendo o cuidado de mudar o sinal: nestes países o Teatro Jornal assumiu funções de denúncia e crítica das condições de vida e trabalho, ou do estado da luta de classes. Seguramente Augusto Boal tomou conhecimento da história desta experiência tal como se deu nos Estados Unidos.
Quando o Teatro de Arena de São Paulo, sob a batuta de Cecília Boal e Heleny Guariba, assumiu em 1971 a tarefa de formar seu primeiro núcleo de teatro jornal, o Brasil já vivia o período mais negro da ditadura, em que até os jornais que a apoiavam estavam sob censura. Augusto Boal elaborou uma série de técnicas de leitura crítica do noticiário e as publicou no volume Técnicas latinoamericanas de teatro popular. Neste momento, já está presente com a máxima clareza a tarefa da democratização do meio de produção teatral e a função do teatro como recurso para expor fatos que a ditadura pretendia silenciar, como as prisões, as torturas e os assassinatos. Em outras palavras: a essência do agitprop já foi encontrada na prática por Augusto Boal. Ela consiste na multiplicação dos grupos de praticantes do teatro como arma política. No caso brasileiro, tratava-se de arma de esclarecimento militante e de defesa.
Teatro Fórum
Depois da prisão Boal seguiu (mais ou menos na condição de foragido e não de exilado convencional) para Buenos Aires, de onde estabeleceu contatos em diversos países, como Peru, México e Estados Unidos nos anos de 1971 a 1976. Na experiência peruana, encontrou na prática a forma a que chamou teatro fórum, claramente um desenvolvimento da peça dialética: trata-se de elaborar (pelos próprios interessados) uma situação de conflito (contradição básica) cuja solução depende das propostas e da participação, inclusive cênica, dos espectadores, que por isso mesmo Boal passou a designar como espect-atores.
Em função dos temas geralmente desenvolvidos pelo teatro fórum (e demais técnicas que começam a ser exploradas, como o teatro imagem), também é possível perceber seu parentesco com o processo de agitação do exército vermelho, pois todas as formas de opressão correspondem a algum tipo de infração de leis escritas ou, sobretudo, de princípios igualitários nas relações humanas. Boal costumava dizer que o teatro fórum é uma espécie de ensaio para a revolução.
Digamos que o teatro fórum é uma combinação engenhosa do processo de agitação com a peça dialética, na qual se expõe um conflito sem resolução. Neste sentido, independente do conhecimento que Boal pudesse ter destas modalidades do agitprop, o simples fato de combinar estas duas para produzir uma terceira corresponde a uma contribuição objetiva para o avanço do repertório de todos os que, como ele, entendem que o teatro é uma arma de luta no front cultural como outra qualquer. Como esta é a modalidade mais conhecida do repertório do Teatro do Oprimido nas suas mais diversas técnicas, não é necessário determo-nos em seu detalhamento, que nos levaria longe demais.
Teatro Legislativo
Por razões que podem ser encontradas em seu livro Hamlet e o filho do padeiro, Boal não se arriscou a voltar ao Brasil antes de se completar (por assim dizer) o processo de democratização. Instalando-se no Rio de Janeiro em 1986, em breve tempo acabou imprimindo um desenvolvimento inteiramente lógico ao teatro fórum. Tratava-se de criar, com o teatro legislativo, um novo sistema, mais complexo, porque incluía todas as formas anteriores do Teatro do Oprimido, além dos procedimentos parlamentares. Como o passo-a-passo do processo está devidamente registrado nas diferentes edições do livro Teatro legislativo, trataremos apenas do essencial.
Eleito vereador em 1992 na cidade do Rio de Janeiro, nosso diretor teve a ideia de colocar seu mandato a serviço do programa do Partido dos Trabalhadores que consistia em estimular a participação organizada da população na elaboração do orçamento do município e, não havendo nenhum impedimento para tal, na própria elaboração de leis. Estava desenhado o desenvolvimento mais consequente da técnica do fórum, pois agora os grupos organizados da população oprimida poderiam, além de formular os problemas, apresentar propostas efetivas, no plano legislativo, para a sua solução. Como disse Boal, a população poderia aprender a legislar a partir de uma consulta popular efetiva. Era uma espécie de ensaio de práticas soviéticas, na medida em que o vereador efetivamente pôs seu mandato a serviço das comunidades que o elegeram.
Agora não se trata mais apenas de teatro político, mas de teatro como política, uma forma de exercer a política, não mais apenas no plano da imaginação, mas na prática. A prova empírica está nos resultados: em quatro anos de mandato como vereador, Augusto Boal viu aprovadas treze leis que tiveram origem nos trabalhos do teatro legislativo. E como se tratava de teatro, as sessões da Câmara Municipal eram efetivamente teatralizadas e nesta teatralização verificava-se o empenho dos participantes em expor seus pensamentos e sugestões.
É muito evidente o vínculo entre o teatro legislativo e o processo de agitação. Como vimos acima, durante a guerra civil (e por algum tempo depois) o processo de agitação teve a função explícita de treinar os soldados do exército vermelho e a população em geral para participar dos conselhos (sovietes), que também tiveram por longo tempo a função de tribunal de pequenas causas. O teatro legislativo, numa circunstância limitada à promessa de democratização do Brasil, revelou-se como uma técnica de ensaio da população oprimida para participar da vida política do país. Tratava-se de demonstrar na prática a possibilidade de tomar o destino nas próprias mãos.
Augusto Boal costumava dizer que a revolução precisa ser feita em legítima defesa da humanidade. O teatro legislativo, como o processo de agitação, é um ensaio para a organização da revolução através dos conselhos.
[1] Professora aposentada da Universidade de São Paulo.
[2] Com o título “Sobre os tribunais militares”, a íntegra pode ser lida com proveito no seguinte endereço:
https://www.marxists.org/archive/trotsky/1919/military/ch30.htm (consulta em 27/01/2017).