Texto de Luiz Vaz, do livro “Literatura e Medicina. Uma Experiência de Ensino” (Ed. Livros Ilimitados, 2014)
Convidado para escrever esse texto, logo me ocorreu um fato. Passemos então direto ao relato: na terrível enchente de 1987, eu era animador cultural de uma escola no Rio de Janeiro e, como voluntário, me uni a outros animadores, com aquilo que julgávamos ser nossa melhor contribuição, promover atividades culturais, e nos colocamos a serviço das vítimas da chuva que se encontravam abrigadas nas escolas onde atuávamos. Montamos uma peça teatral, Mágoas de Março, que pretendia repensar artisticamente, com crítica e criatividade, a situação recorrente das enchentes, da torrente de vítimas, da avalanche de descasos. Bem na linha do Teatro Denúncia.
Aos 25 anos, recém-saído de uma oficina com o famoso homem de teatro, Augusto Boal, e sem compreender ainda muito bem sua proposta mais conhecida e difundida no mundo, a Metodologia do Teatro do Oprimido, foi o que na posição de um estreante em direção teatral pude desenvolver. Essa apresentação foi vista pelo querido e saudoso ator Francisco Milani, num evento que reunia abrigados de diversas escolas do Rio numa Lona Cultural na Ilha do Governador. O ator foi categórico na sua crítica ao nosso esquete teatral: “Não se opera um cérebro numa oficina!”. Só depois pude conhecer melhor os fundamentos da sua crítica, por meio das posições marxistas sobre a arte e o quanto, o que delas conseguiu se entender, estava impregnada na fala do ator que na época exercia um cargo político por indicação do seu partido, o PCB do qual fora membro histórico.
A crítica mexeu comigo. Chegando em casa, conversei com o meu irmão mais velho, formado há alguns anos em medicina, e de tudo que eu relatei, o que ele me devolveu foi em resposta à enigmática frase do Milani: “Se for necessário, sim, pode-se operar um cérebro numa oficina!”
SOBRE A “FUNÇÃO” DA ARTE
Sobre a utilidade da arte, hoje, entendo, não há UMA utilidade! Não usamos a arte. Dela fruímos, usufruímos por poros, retinas, membranas auriculares, pela constelação de neurônios que há dentro de nós e, pelas de nós emanadas auras de memórias e afetos. O nosso idioma é uma linguagem, como linguagem é vivo e sofre ou goza de transformações permanentes, mas, está sempre com a sua principal função resgatada: sua utilidade é comunicar.
A publicidade é uma forma de comunicação, ela até se utiliza de recursos artísticos para surpreender os sentidos e inspirar o desejo, mas sendo pragmática como é, é uma forma de comunicação. Já a arte, puro desejo de fruição, de provocar gozo estético, até pode comunicar, mas, suas linguagens (plásticas, cênicas, audiovisuais, musicais e outras), e em cada uma delas sua permanente transformação da própria linguagem, destitui de si a comunicação como seu primordial compromisso, porque atinge ou não uma determinada pessoa, e diferentes pessoas por ela arrebatadas fruem de sensações diferentes. Não só a arte produz fruição. Sua maior inspiradora, a natureza também faz isso. Um crepúsculo alaranjado após uma tarde de chuva sob um belo arco íris é pura fruição, para isso precisa de seu apreciador atento, este uma pessoa renovada, em estado de graça por viver este momento.
Vale então dizer que a arte é uma tentativa permanente do ser humano de provocar este efeito fenomenal, para isso usa de meios de realização, de técnicas, de conhecimento, de metodologia que, juntando-se aos acasos e aos surtos de imaginação, podem provocar esta sensação que ainda que impulsionada por um desejo racional, mantém suas características de fenômeno especial e ímpar. A produção artística se ampara na inspiração ou na conspiração, inspira-se ao tentar reproduzir algo que a natureza, a realidade ou outra obra artística tenha em algum momento oferecido e queiramos trazer de volta com outro corpo, um corpo novo.
Conspira-se quando, por inconformismo, pretende-se preencher o que consideramos falha ou falta na criação suprema com o amálgama da arte. Criamos por um desejo urgente de colocar no mundo algo de que sentimos falta, mesmo que, a princípio, solitários como artistas criadores, só nós pressintamos essa falta. Neste momento a arte aparece como denúncia.
Sim! A arte comunica, mas, não é comunicação. Comunica assim como um fenômeno celeste ou um acidente de trânsito comunicam. Se não há trânsito seguro entre a emissão e a recepção, o que, aliás, não é fato tão certo nem mesmo na comunicação, a função da arte definitivamente não é a de comunicabilidade, por mais que esta seja a pretensão do criador artístico.
A ARTE NÃO É COMUNICAÇÃO, MAS CURA?
O meu mestre teatral, com muito orgulho, que privilégio meu! Augusto Boal, foi um dia chamado para inaugurar com sua fala um Congresso Mundial de Terapeutas (psicodramatistas), e nos contou como reagiu, dizendo que por não ser um Terapeuta, via-se constrangido em inaugurar oficialmente o congresso. A organizadora do evento rebateu de pronto: “Boal, você não é Terapeuta, mas, é certamente Terapêutico!”
Cabe aqui comentar que Boal criou entre outras coisas um método de Teatro e Terapia chamado O Arco Íris do Desejo, já no nome, pura poesia, pura fruição. Hoje leciono uma disciplina de Linguagens Artísticas no curso universitário de Musicoterapia e compreendo melhor essa relação entre arte e processos de cura, e é bastante intrigante pensar que o que já está totalmente referendado pela ciência quanto aos poderes da arte, ainda nos é negado no cotidiano, com baixo estímulo, poucas escolas de artes, uma presença ainda muito tímida das artes, seja no fazer ou apreciar, nos ambientes, familiar, comunitário e mesmo escolar. É como se antes reconhecêssemos a importância do “remédio” quando ainda lhe negamos sua importância como provento, como alimento, como prevenção.
Ainda bem que a arte não preconiza verdades, como essencialmente fazem a ciência e a religião. A arte erra, pois é um caminhante sem uma tese a perseguir, tendo sempre um lugar novo a percorrer e, por isso, é capaz de estimular e contaminar -que assim seja! – as atividades científicas e religiosas. Seu campo de atuação é mesmo outro, o de um descompromisso compromissado, uma desnecessária urgência, algo ao alcance e ao poder de todos, nas poesias engavetadas, nos grafismos nos cantos dos cadernos, em preciosos livros, nas rodas de artistas de ruas, em gigantescos palcos, pequenas galerias e portentosos museus.
A luz de onde se originam os efeitos espectrais das cores é a existência física das cores, elas não vêm prontas em potes, só se encantam com a luz. Os sons não existem sem a sensibilização das nossas membranas auriculares, capazes de percebê-lo com o movimento do ar, o produto final da arte não é peça que o absorto escultor acabou de apresentar ao mundo, mas, a imaterial sensação de encantamento do seu apreciador. Parla! E a poesia não está na palavra escrita, mas, no que de súbito salta dela quando a vemos conjugada com os nossos afetos. É nessa função extra essencial da Arte que ela é uma importante aliada das ciências, das humanidades, e aqui, como cabe falar, em especial da Medicina. O Teatro usa palavras como Laboratório na sua terminologia, a Medicina usa o termo Teatro ao se referir a organização do espaço para uma operação, e o Teatro de Operações nos faz pensar que em tempos de guerra podemos, e até mesmo devemos, operar um cérebro numa oficina!
Especialmente se for uma oficina de teatro.
Texto de apresentação da peça A Família, de Augusto Boal, escrito por Cecília Boal. A seguir, acesse textos de apresentação de Noeli Turle (Lico) e Eucanaã Ferraz e a peça propriamente dita.
No ano de 1987, voltamos a morar no Rio, a convite de Darcy Ribeiro. Nosso primeiro trabalho foi na Secretaria de Educação, com os animadores culturais dos Centros Integrados de Educação Pública (Cieps), e era num Ciep onde nos reuníamos, com a coordenação de Maria Libia e assistidos por Rosa Luisa Marquez, a nossa amiga de Puerto Rico.
Foi um trabalho inesquecível, muito divertido. Formamos uma grande comunidade. Havia muitos animadores, vindos de toda parte: São João de Merity, São Gonçalo, Duque de Caixas. E todos, eles e nós, tomados pelo mesmo entusiasmo. Criamos vários textos de Teatro Fórum e viajamos fazendo apresentações nos diversos Cieps do Estado.
Um deles, A família, era um foro de grande sucesso; era o preferido do público para o debate. O público sempre era muito numeroso e o debate muito intenso.
Rosa Luisa e eu éramos os coringas, Rosa pontuando as intervenções com um imenso gongo; Fabian improvisando iluminações. Todas as apresentações terminavam sempre com comida, muita comida oferecida pelos Cieps, no refeitório.
Um tempo bonito, proveitoso e divertido. Pensando junto com os participantes da cena e do público alternativas para situações de conflito, porém sem deixar nunca de brincar e nos divertir.
“Pensar brincando, brincar sem deixar de pensar” definem para mim o estilo do Boal. Não desistir, não se resignar , não se deixar invadir por um sentimento de impotência – geravam nessa grande equipe um desejo muito forte de continuar trabalhando em qualquer condição.
Família – Lico Turle
Holanda, uma experiência com o Teatro do Oprimido – Eucanaã Ferraz
Teatro Fórum – A Família