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MILAGRE NO BRASIL – COMENTÁRIO AFETIVO[i]
Por Silvia Balestreri

Neste ano de homenagens aos 80 anos de Boal, decidi me encontrar de novo com Milagre no Brasil, livro que li há mais de 20 anos, e durante cuja leitura me lembro de ter rido e chorado, muitas vezes ao mesmo tempo.
Boal escreveu dois textos sobre sua experiência com a prisão e a tortura: a peça Torquemada, no mesmo ano em que foi solto, 1971, e, alguns anos mais tarde, em 1976 ou 77, este Milagre no Brasil. A edição que tenho é a primeira lançada pela editora Civilização Brasileira no país, do ano de 1979.
Escolhi uns trechos do livro e lhes atribuí títulos. Poderia ter escolhido o momento em que ele narra a tortura que sofreu, mas preferi escolher outras tantas passagens menos conhecidas.
A primeira parte, bem no começo do livro, reporta ao momento um pouco anterior à prisão, quando Boal está ensaiando a peça Arena Conta Bolívar.
POSTURA DIANTE DA CENSURA
Eu tinha acabado de ensaiar Simon Bolívar e estava cansado. Um dos atores tinha me perguntado:
– Afinal pra que é que a gente fica ensaiando tanto? A censura não vai mesmo deixar que a gente faça essa peça…
Eu não acreditava nada em nenhuma “abertura”, como muitos otimistas; desde 1964, desde uma semana depois do golpe e até hoje, tem muita gente que continua dizendo que o governo vai mudar, que vai redemocratizar o país, restaurar os direitos do homem, etc. Eu não acreditava que isso fosse possível; na minha opinião o governo não ia restaurar nada de motu proprio. Mas não queria de jeito nenhum aceitar a autocensura: não queria facilitar o trabalho deles. Se quiserem proibir uma peça minha, que proíbam: têm a força do lado deles. Mas não contem comigo para que me autocensure. Eu não queria fazer como muita gente que já nem sequer se permitia pensar em certas peças que gostaria de fazer, só de medo da censura. Por isso, continuávamos ensaiando essa peça sobre o Libertador de tantos países de Nuestra América, o homem que se auto-intitulou “O Lavrador do Mar”: tudo o que fez, ficou por fazer, tem que ser feito de novo…
7*
Nas duas passagens a seguir, Boal já estava preso. Ele foi levado primeiramente para o DOPS, onde, após alguns interrogatórios, foi torturado. Depois, transferido para o Presídio Tiradentes, ficou em uma cela coletiva. Nesse momento, estava ainda na cela isolada do DOPS.
PODERES QUE PERMANECEM
Durante toda a manhã da terça-feira só se ouviu a voz horrorosa do Sílvio Santos amando o “seu” Brasil. Era insuportável. Era demasiado irônico ouvir falsos elogios ao Brasil, quando na verdade o que ele elogiava era o governo, esse mesmo governo que o ajudava a fazer suas negociatas e que ao mesmo tempo nos tinha ali, prisioneiros.
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Aqui, já depois de ter sofrido tortura, no momento de tomarem seu “depoimento oficial”, mais PODERES QUE PERMANECEM:
Na quarta semana, finalmente, vieram me chamar para o depoimento oficial. O funcionário me fez o mesmo interrogatório de sempre, e recebeu as mesmas respostas. Acrescentou também algumas perguntas novas sobre o dossiê que a polícia política tinha de mim: uma passeata de gente de teatro contra a censura, uma assinatura de um jornal camponês, Terra Livre, e coisas que tais. Perguntou estupidezas como esta por exemplo:
– Por que foi que você devolveu os prêmios de teatro dados pelo jornal O Estado de São Paulo?
Até esse ponto ia a imbecilidade: a devolução de meros prêmios teatrais, decidida por uma assembléia de toda a gente de teatro, era considerada “subversiva”. Esse mesmo diário, durante vários anos depois, sofreu a censura prévia desse mesmo regime que defendia.
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Muito mais adiante no livro, já na cela coletiva do Presídio Tiradentes, onde “sempre havia alguém do Arena preso”, Boal tece impressões a partir das informações trazidas por presos recém-chegados:
O MUNDO ESTÁ MUDANDO (números)
Eu me imaginei, como uma espécie de Rip Van Wink1e da história muito conhecida, fantástica, de um homem que sobe em uma montanha e aí encontra um velho e começa a jogar xadrez com ele; quando termina, volta ao seu povoado mas, sem que o tivesse percebido, já se haviam passado 50 anos. Eu pensei que a mim me podia passar a mesma coisa: sair da prisão e me reencontrar com meus velhos amigos, só que 50 anos mais velhos. Alguns, 50 anos mais maduros; outros, 50 anos mais decadentes.
Era normal que lá fora, na “liberdade”, tudo se modificasse. Eu já sentia uma mudança muito marcada nas pessoas que vinham de fora. Pareciam preocupados exclusivamente com o dinheiro, com quanto ganhava cada artista, especialmente quanto ganhavam os que trabalhavam para a TV Globo, subsidiária da Time-Life, que pagava astronômicos salários e ao mesmo tempo obrigava os artistas a fazerem a propaganda do governo. O mesmo contrato onde figuravam as cifras siderais continha também a cláusula propagandística. Nem todos se submetiam, é claro. E sobre a Bolsa de Valores, então? Parece que todo mundo jogava na bolsa. Tantos milhões, tantos pontos. Eu tinha a impressão de que as pessoas começavam a esquecer as palavras e dialogavam exclusivamente com números.
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Já quase ao final do livro, Boal coloca na boca de um companheiro de cela recém-chegado, o “magro”, o relato de diferentes formas de resistência que começavam a aparecer no Brasil:
FORMAS DE RESISTÊNCIA E ESPERANÇA – Operação Zelo
– É o seguinte: o governo pediu aos trabalhadores que trabalhassem mais. Aquela velha história: trabalhando mais aumenta a oferta e os preços caem e aumenta o salário real. A velha mentira! Aumentando a produção, o que acontece mesmo é que os burgueses vendem mais para o mercado externo e os trabalhadores o único que ganham é mais calos nas mãos. Numa dessas, um ministro pediu para que os trabalhadores cuidassem mais da qualidade dos produtos, com vistas à exportação e à competição nos mercados internacionais Pediu pra que pusessem mais “zelo” naquilo que fabricavam. Bom, isso bastou para que os operários descobrissem uma nova forma de luta: a operação zelo. Cada produto passou a ser examinado e reexaminado tantas vezes e cada parafuso aparafusado e desparafusado tanto e tanto que a produção de muitas fábricas baixou em 30 e até 40%. Muitos gerentes foram obrigados a pedir aos trabalhadores pra não terem tanto zelo assim. .
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FORMAS DE RESISTÊNCIA – Intelectuais e Artistas
Aqui, Boal se dirige a um outro companheiro de cela, o “Mosca”:
Mosca, me faz um favor: vai dizer ao Caetano Veloso que sim, que o violão do Baden Powell pode ser de direita ou de esquerda, depende do uso que ele faça dele. Vai dizer a ele que pintar os lábios e remexer os quadris como ele fazia pode ser de direita ou pode ser de esquerda: depende de pra que é que serve. A única coisa que não é possível é que uma pessoa fique entre muitas outras e que ao mesmo tempo se esqueça do mundo, e da política, porque é justamente aí no meio de todas as outras que está a política, aí justamente está o mundo. É preciso primeiro saber quem são essas muitas pessoas, e aí a gente vai ficar sabendo de que lado está o violão.
214 e 215
E eu fui dormir pensando contente que não eram apenas os operários e camponeses que resistiam: pensei também que entre nós, os intelectuais, também entre nós havia muitos que, embora sofrendo pressões econômicas, repressão policial, censura e ameaças, ainda assim não se dobravam. E não era apenas um ou outro compositor: eram também romancistas, jornalistas, dramaturgos, poetas, historiadores, sociólogos, professores, pintores… Pensei em toda essa gente que a ditadura não havia conseguido comprar nem calar… E pensando neles, senti um orgulho enorme de ser intelectual, e de ser brasileiro.
215
Nas duas última páginas do livro, no momento em que está saindo da prisão, Boal conta que se despediu dos companheiros de cela e chorou. Enquanto sai, continua a ouvir a voz cheia de novidades e impressões do companheiro que acabara de chegar:
SAÍDA DA PRISÃO – Estamos vivos!
Quando terminei de me despedir de todos, dei a volta no corredor e olhei minha cela pela última vez, pela janela, mas agora já do lado de fora. O magro continuava falando, falando, falando:
– Eles nos queriam matar a todos. Mataram muitos. Uns morreram de bala, outros morreram de medo. O Brasil se transformou em um enorme cemitério. Parecia que os homens saíam de suas casas e se dirigiam sozinhos às suas sepulturas. E os que já estavam mortos aí apodreceram; e os que estavam moribundos aí endureceram, e parecia que todos estavam mortos, bem mortos. Mas alguns começaram a dizer baixinho, “eu estou vivo, eu estou vivo”, e outros ouviram a voz que dizia que estava viva, e de repente começaram a dizer baixinho, primeiro bem baixinho, “eu estou vivo, eu estou vivo”, E outros escutaram e, agora já são muitos os que estão dizendo que estão vivos, são muitos os que estão vivos, dizendo “eu estou vivo, eu estou vivo…” Já são muitos os que estão gritando que não estão mortos, que estão vivos, já são muitos os que estão fazendo coisas de vivos e não coisas de mortos, e esses que já são muitos estão aumentando, já são muitos mais companheiros, é certo que a gente não deve ser otimista demais, mas já existem muitos mais que estão dizendo e fazendo coisas de vivos, e estão vivos, e esse é o milagre, o milagre no Brasil, o povo está vivo, bem vivo, e muito cedo os assassinos que pensaram que seria possível matar o povo, muito cedo esses assassinos vão perceber que os mortos são eles e que já aconteceu o milagre, o povo inteiro, o povo vivo, gritando “eu estou vivo, eu estou vivo…”
Muitos na cela estavam chorando.
Quando desci, no pátio ainda se podia ouvir a sua voz. Abriram um enorme portão de ferro e eu saí. Lá fora, já não se ouvia mais a sua voz. Lá fora muitos tinham medo de falar, muitos tinham cara de medo. Mas certamente estavam vivos; por dentro, inaudivelmente, estariam gritando que estavam vivos.
Fui embora para casa. Se me lembro bem, eu estava contente.
Muito contente.
290 e 291
Em relação à SAUDADE, trago aqui as palavras que Boal me escreveu em um email de outubro de 2003, em resposta a uma mensagem em que eu lhe dizia ter descoberto, pela internet, o contato de queridos amigos da Alemanha, que conheci quando vieram ao Rio em 1991, para fazerem um curso com ele. Boal se disse feliz com a descoberta, que iria escrever para eles e, em resposta a minha declaração de saudade “daquele tempo em que, imagine, eu nem tinha computador”, escreveu:
Também eu sinto saudades daquele tempo. Sinto tantas saudades de tantas coisas, mas penso nas muitas que ainda não fiz e quero fazer para sentir saudades depois. Um beijo, Boal
[i] Apresentado na homenagem Augusto Boal – 80 Anos, em 04 de junho de 2011, na sede da Cia. do Latão, em São Paulo. Reapresentado em 16 de outubro de 2011, no evento Augusto Boal 80 Anos – Nossa Homenagem, no Teatro de Arena de Porto Alegre. Silvia Balestreri é professora do Dep. de Arte Dramática e do PPG Artes Cênicas da UFRGS.
* BOAL, Augusto. Milagre no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979. Esta é a edição utilizada aqui para todas as citações. Os números abaixo e no canto direito de cada citação correspondem às páginas do livro.

*Maria Klabin pertence ao Conselho Consultivo do Instituto Boal
COMUNICAÇÃO
BOAL FILÓSOFO. PARA UMA CIVILIZAÇÃO TEATRAL SOLIDARIA
Profa. Dra. Alessandra Vannucci
Universidade Federal de Ouro Preto
RESUMO
Em suas mais recentes reflexões sobre a Estética do Oprimido (2009), Boal descreve nossa sociedade como um império do imaginário e suas estratégias de controle político e estético como uma “invasão de cérebros” que, visando o monopólio dos desejos, acaba provocando a “atrofia do imaginário”. Sintonizado com premissas filosóficas e sociológicas, Boal enfrenta o tema pós-moderno por excelência, a função da arte na indústria cultural, teorizando não o fim da arte mas ao contrário, a necessidade de sua reivindicação como direito de cidadania. Desmontando qualquer pretensa monarquia artística, atores sociais compartilham o teatro como instrumento estético não-violento para a construção de uma civilização solidária. Um mundo melhor possível. A comunicação foca o projeto Madalena, Teatro das Oprimidas, idealizado e realizado por Alessandra Vannucci em parceria com Barbara Santos do CTO-Rio em 2009 e 2010 graças ao Premio Interações Estéticas e Residências do MinC-Funarte. Seis laboratórios envolvendo cerca de 140 mulheres no Brasil, Portugal, Guiné Bissau e Moçambique experimentaram um “laboratório estético” com exercícios de Estética do Oprimido e outros (incluindo as linguagens dança – música – performance – poesia), especialmente dedicados ao corpo feminino. Os laboratórios produziram seis “roteiros” de ações em conflito significativo cuja partitura física reflete a diversidade cultural e individual dessas mulheres às quais o teatro serve como “ponto” de encontro e “ferramenta” para elaboração de alternativas possíveis à realidade de violência e subordinação que vivem.
Palavras-chave: Estética das Oprimidas. Interações estéticas. Dispositivos de cidadania.
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Quando era um jovem diretor, no Brasil da década de 60, Augusto Boal engajava com tons heróicos sua revolta a favor dos oprimidos – sua raiva diante da miséria, da iníqua distribuição de terras, da privação de liberdade sob a ditadura militar. Um dia, recitando com seus companheiros uma cena sobre a necessidade da reforma agrária, seu grito enfático (Verteremos nosso sangue!) provocou, na muda platéia de camponeses, um efeito que marejou os seus olhos. Virgilio, um camponês forte, exultou em ter por companheiros de luta aqueles rapazes intelectuais, “da cidade” e convidou-os para pegar nas foices e junto com eles, naquela tarde mesmo, ir resgatar a terra ocupada pelos coronéis. Missão cumprida, pensou Boal; e seguiu explicando que, sendo eles uma companhia de atores e atrizes, suas foices eram de papelão. “Mas a raiva é sincera, retrucou Virgilio, então vamos juntos, que foice a gente tem”. Boal estremeceu. Como justificar por sincera a raiva de um ator que somente finge usar sua foice contra os opressores e nunca verterá seu sangue para a causa dos oprimidos? Virgilio – guia involuntário – apontava-lhe o problema, não nas palavras de revolta em si, mas no fato que aqueles que as diziam não eram camponeses e sim, artistas.
Voltou a São Paulo. Em cinqüenta anos de teatro, insistiu em viabilizar sua sincera mas imprestável raiva daquele dia buscando formas de teatro alternativas ao “teatro político” no sentido dado historicamente à palavra: atores lançando, do palco, missões nas quais outros (espectadores) lutariam na realidade. Ser solidário – era o mantra guevariano da época – significa correr os mesmos riscos. A solução seria não renunciar ao teatro e passar à luta, mas agenciar o teatro como instrumento de luta, entregando-o às classes oprimidas: desistir de sua doutrinação, adquirindo uma postura transitiva e maiêutica, como na pedagogia de Paulo Freire, onde “conscientizar” não significa colonizar alguém, mas fazer com que repare na própria opressão, se capacite de que pode transformá-la e com quais ferramentas. Boal resolveu não fazer mas teatro político e, sim, fazer do teatro um instrumento para a política: isto é, a arte de governar a polis, a comunidade de cidadãos democrática, a utópica Atenas dos indivíduos livres e iguais, sem heróis e sem delegados. Diante destas novas tarefas, a função do diretor seria mais a de um curinga: um operador maiêutico capaz de levantar as perguntas, observar as contradições da realidade e abrir caminhos em diálogo com a platéia. A largada para o Teatro do Oprimido estava dada: não um estilo, mas um método hoje apropriado por milhões de seres humanos virtualmente livres e iguais, porém oprimidos em seus diversos desejos, em mais de 70 países, nos cinco continentes.
O eterno retorno à Atenas, como virtual agorá onde a democracia se inventou participativa e transitiva, implica na revisão periódica de seus fundamentos conceituais e das primeiras ações afirmativas que a conduziram a uma democracia delegada. Sócrates, Platão, Aristóteles são autores com as quais Boal dialoga, à vontade em seus trajes de filósofo maiêutico e convocando seus leitores, como faria um coringa com os espectadores, ao banquete filosófico. O teatro, narra Boal, no começo era o canto ditirâmbico, a dança desenfreada, a festa dionisíaca. Certa hora, alguém entre os atores resolveu se destacar do coro para defender seu desejo enfrentando o consenso daquele: e foi o drama. Em seguida, alguém resolveu separar palco e platéia: de um lado atores dançando, cantando, vivendo paixões e desejos; do outro lado espectadores, parados e mudos. Acabou a festa. Já participaram – provoca então – de um show de seu cantor preferido? De um jogo de seu time do coração? Conseguiram ficar passivos? Não? No entanto, é isso que acontece ao espectador do teatro dramático o qual, conforme o descreve Bertolt Brecht, pensa: “O sofrimento deste homem comove-me, pois é irreparável. É uma coisa natural. Será sempre assim. Nada pode ser mudado. Sim, eu também já senti isso. Eu também sou assim. Isto é que é arte! Choro com os que choram e rio com os que riem” (BRECHT: 1975, p. 75).
Ao sentir terror e piedade pelo destino inevitável, mesmo que injusto, do herói com cujo desejo foi levado a identificar-se, o espectador padece (em dose homeopática) o mesmo castigo e assim è purgado (vacinado) do desejo que o originou. Ao contrário, o espectador “dialético” que Brecht procura despertar na platéia, diante do mesmo destino, pularia do banco revoltado e exclamaria: “O sofrimento deste homem comove-me porque seria remediável. Não! Isso daí, eu nunca passaria. Isto tem que acabar. Isto é que é arte! Rio de quem chora e choro com os que riem.”
O mesmo drama pode ter, assim, um efeito catártico (purgar o desejo do espectador) ou dinamizador (fazer com que descubra que seria capaz de realizá-lo). Ao primeiro uso do teatro como aparelho disciplinador através do mecanismo da catarse (assim nomeado por Aristóteles na Poética, por isso tachado por Brecht de “aristotélico”), opõe-se um uso alternativo e “épico” do teatro, capaz de mostrar simultaneamente os diversos pontos de vista na luta de classe: as contradições da realidade. O ator trata de mostrar como vão as coisas realmente e não de revelar a verdade sobre elas. O espectador, de passivo, se torna assim “dialético”, isto é, politicamente alfabetizado, preparado para a revolução.
Mesmo militando na campanha anti-catarse movida por Brecht, Boal radicaliza a estética brechtiana quando propõe um teatro que não se limite a transformar o espectador mas inclua-o como participante no jogo da transformação (por Platão no Simpósio aludido com a palavra metaxis, que Boal aqui adquire)[1] que a ficção teatral implica. Espelho da realidade, o teatro è um jogo que “ensaia” ou “finge” a sua possível transformação. Sendo, propõe Boal, a teatralidade neste sentido uma prerrogativa da espécie, pois qualquer ser humano consegue “se ver” como em um espelho,[2] ser espectador de si mesmo como sujeito e objeto da própria ação e reflexão, então não há espectador passivo: todo espectador è ator. Melhor: espect-ator. Funciona assim. O ator apresenta o drama de alguém que tenta mudar a sua realidade opressiva. O espectador dialético vê, no drama apresentado, a realidade como è e, também, como poderia ser; reconhece os muitos opressores que são antagônicos à luta do protagonista e impedem-lhe de realizar seu desejo, elabora e treina estratégias alternativas. Neste momento – è o teatro-forum – o espectador entra em cena e joga o seu jogo como ator, tentando transformar aquela realidade opressiva.
Dissolvendo uma das mais profundas aporias do teatro moderno – a incongruência entre sua alma “espiritual” e sua natureza de mercadoria no império do entretenimento – a destituição do ator de seu monopólio profissional (enquanto “especialista” da arte) visa re-fundar o teatro como espaço estético e político comunitário (lugar onde a polis se vê, se espelha, se transforma) anulando a opressora divisão de tarefas entre palco e platéia. Todos podem fazer teatro, inclusive os atores. Pois como toda arte, o teatro è uma linguagem e nenhuma linguagem è inocente quando utilizado por uma parte social: ao contrário, è veiculo de desejos, interesses, intenções. Se a arte – a consciência de dispor dela como linguagem – è um direito universal, cabe ao artista devolve-la à multidão como ferramenta de expressão e de luta: capaz de mudar a realidade e não somente de descrevê-la. O publico que se espelha no drama exerce um poder dialético e, também, transformador. A força probatória das soluções propostas no jogo teatral pode ser transferida à realidade. De teatrum mundi, ou paradigma do palco-cênico social (como em GOFFAMM, 1969), o teatro passa a ser arena para esta luta democrática, especialmente participativa, sem heróis, sem delegados e sem maiorias, já que não exige pré-requisitos virtuosísticos. Arena da cidadania, do dissenso, da diversidade, da paz e do conflito – porque somente saindo da passividade e enfrentando os opressores è que o oprimido se liberta e conquista a paz – o espaço teatral configura-se como “praça” menos usurpada do que um palco e mais próxima da utópica agorà de Atenas. Dado o seu objetivo externo – a construção do mundo real – a obra não se contenta de exibir bons conselhos e exortar à ação, mas se propõe como laboratório pedagógico transitivo cujos participantes (espect-atores) reproduzem o jogo de interação social percebendo a rede (complexa, dinâmica) de poderes antagônicos e experimentando estratégias de mudança. Em cena, ideologias viram personagens, regrados em seu gestual por códigos de conduta socialmente determinados (o que Brecht designa de gestus). Nesta interface dialética entre mundo real e mundo representado, o espect-ator (instrumento, objeto e autor coletivo de sua obra) vai ocupando, no teatro de Boal, aquele que poderia ser designado, seguindo o carismático apelo humanista de Hegel, como um “terceiro lugar” de autonomia do ator social (cidadão) voltado à construção de uma civilização teatral solidária. Não mais um lance utópico, mas um formidável método empírico, coletivo e não violento para inventar e ensaiar a possibilidade de um mundo melhor.
Na Estética do Oprimido (2009) sua última obra e legado para militantes do método no mundo inteiro, já que oferece uma teoria em diálogo com práticas contemporâneas, Boal lança nova campanha, convocando todo o arsenal das artes como armas, para reverter o processo a que chama de “invasão do cérebro”, isto é, a monopolização dos desejos dos cidadãos, cujos neurônios absorvem o domínio da mídia global desde a mais tenra infância. Aponta para um novo império: o “fascismo da imagem” que reduz a percepção metafórica e inibe a natural criatividade do ser humano, causando sua degradação artística. A atitude de Boal frente à indústria cultural se apropria e ao mesmo tempo resolve a ambigüidade de Walter Benjamin e a postura apocalíptica de Theodor W. Adorno, fontes com as quais dialoga. Se a aura è uma “aparição única de algo distante, por mais próximo que seja” como descreve Benjamin (1985, p. 170) ela não pertence ao objeto, afirma Boal, mas è “uma projeção que o observador faz sobre o objeto” (2009, p. 41) uma vez construído. Sendo complemento ideológico e não substancia intrínseca à obra, a aura é uma arma a disposição de quem possui ou produz arte. Longe de ser sabotada pela reprodução técnica, como Benjamin imaginava, ela é apropriada pela indústria cultural, “construída” e multiplicada pela mídia “como forma de acrescentar valor a obras que nem sempre o têm” (idem, p. 45). Daí a atitude do Boal ser afirmativa quando radicaliza a denúncia de Adorno quanto ao uso que a mídia capitalista faz da cultura visando alienar a multidão em massa de consumidores acríticos e infantilizados. No mundo desencantado de Adorno, a arte seria um “sono sem sonhos” do qual o filosofo, como o homem platônico quando tenta tirar seus companheiros da caverna, em vão tenta acordar o povo oprimido. Boal não acha em vão. Movido por uma visão dialética do mundo em movimento constante, onde há lugar para o homem comum fazer sua história, Boal propõe atacar o sistema da arte pela própria arte, desobediente aos imperativos da mass-cultura global (HARDT&NEGRI: 2001). Seu artivismo mobiliza os próprios artistas a recusar toda hegemonia, desmontando qualquer pretensa categoria de exceção e ao contrário multiplicando e devolvendo a arte à multidão de oprimidos (“subversivos submissos”) como arma para subverter seu estado de submissão e elaborar as soluções sustentáveis para o futuro da humanidade em nosso planeta vendido.
Atendendo ao convite, em 2009 e 2010 desenvolvi um percurso de interação estética[3] em sete etapas de viagem (entre diversas regiões do Brasil, dois países da África e em Portugal) e vivencia com mulheres: trabalhadoras, mães, filhas e bisnetas, “atrizes” em seu cotidiano contemporâneo, entre a necessidade de repetir todo dia o mesmo papel ancestral e o desejo de ser outra, de ocupar outros lugares, de ter voz. Um laboratório de artes (dança, pintura, canção, poesia e finalmente, construção de cena) levantou gestos antigos com que, em cada região, mulheres de hoje cumprem, em seu corpo, o destino de gerações de mulheres engajadas na luta pela sobrevivência no campo, no rio, no mato ou no sertão. Seus corpos, suas vozes são territórios marcados pela opressão. Seus desejos, lutas e cantos são transformadores.
O percurso – dedicado a Madalena, ícone de uma presença submissa e calada – pretendia devolver visibilidade e voz, através de ferramentas artísticas, para a expressão estética desta inquietação feminina que a imagem homologada pela mídia global ignora e censura. Cada etapa produziu uma cena que passou a circular no circuito do TO assim como em festivais internacionais, multiplicando o debate, com emoções e idéias, e também o numero de mulheres querendo participar dele.[4]
É evidente que o corpo feminino está passando por mudanças radicais no que diz respeito à sua vivência bem como à sua representação pública. Mesmo nesta fase de aparente emancipação caracterizada pelo acesso ao mundo do trabalho, as relações de exploração do corpo feminino como reprodutor e produtor (no caso do trabalho doméstico, obrigatório, e de outros trabalhos tradicionais) permanecem as mesmas que oprimiam as nossas ancestrais – a primeira, a desvalorização do trabalho feminino em si e a necessária renuncia à outros que ela poderia vir a escolher, por iguais direitos. Mais do que no masculino, é no corpo feminino que se trava hoje a maior contradição entre ancestrais submissões e desejos urgentes, seja suscitados pelo espelho ilusório da mídia e seja pela consciência de ser portadora de direitos humanos universais. Essa condição comporta ilusões, feridas, descobertas e a inquieta busca por alternativas.
Na etapa que ocorreu em Brasília focamos uma comunidade engajada em um gesto de trabalho que faz parte do cotidiano das mulheres desde os tempos mais antigos: o de “catar”, isto é, recolher e reutilizar dejetos da natureza, urbanos ou industriais, o que hoje se diria “reciclar”. Trata-se de uma pratica auto-sustentável característica de uma economia de trocas, ecológica e comunitária, tradicionalmente feminina, que resgata uma mentalidade pré-capitalista muito bem sucedida na história da civilização humana, antes do advento do patriarcado. Ao contrário deste, fundado na propriedade particular, na divisão do trabalho por gêneros e na exclusão dos resíduos (seja objetos como indivíduos), o modelo social matrilinear teria se fundado no direito natural (consumo segundo necessidade e não segundo possesso), na cooperativização do trabalho e na reciclagem comunitária dos bens.
Pensando nisso, em fevereiro de 2010, fui buscar minhas atrizes entre as catadoras de lixo reciclável de cidades “satélites” de Brasília, seguindo uma intuição de que, estando elas à margem da metrópole seja na cartografia e seja pela atividade que exercem (indispensável, mesmo assim desqualificada por ser o ultimo anel da cadeia do consumo), disporiam de outros canais expressivos que não os que regram a conduta das classes “civilizadas”. Sua integração se daria pelos caminhos da criatividade, da inteligência emocional e da auto-estima e não pelo “acesso” à sociedade pelo paradigma do consumo. A opção pelo lixo (o que sobrou do bem após ser consumido, já sem nenhum valor nem utilidade para o mercado) como material de trabalho pretende revelar o paradoxo de uma ordem mundial que se organiza pela inclusão/exclusão de indivíduos e percursos de vida, mais “descartáveis” na medida de sua menor capacidade de compra. Ao mesmo tempo, garantiria um perfeito encaixe no trabalho cenotécnico, tradicionalmente embasado na reciclagem de elementos já usados. Desmontando um mundo, cria-se outro.
A partir do conceito que qualquer diálogo, opressão e conflito entre um indivíduo e a sociedade se inscreve em seu corpo, organizamos um repertorio comum de ações físicas e sonoras que expressassem as emoções e histórias do cotidiano das atrizes. Atingindo a este repertorio sociocultural “orgânico”, agregado às vivências pessoais, montamos uma partitura essencial da qual elas dariam conta com seu corpo, voz, imagens pintadas e instrumentos construídos com materiais catados. Surgiu um tema forte (o direito à moradia) que foi debatido em três sessões de teatro-forum e motivou um percurso legislativo,isto é uma sessão especial, com a presença de especialistas no assunto e legisladores, visando uma proposta de Lei que foi elaborada e votada (em 10 de março) pela assembléia dos espect-atores e está atualmente tramitando no Congresso Nacional. A história apresentada sob o titulo Brazilha – uma mulher que ocupa um terreno por necessidade e constrói nele o próprio lar e, ao ser expulsa pela polícia e abandonada pelo companheiro, não podendo cumprir exigências burocráticas, não consegue reivindicar sua permanência e de seus filhos no lar nem em nome da evidente necessidade e nem pelo cuidado da ocupação pregressa – aponta para um direito evidente, embasado em um desejo natural e indispensável do ser humano, negado a um individuo por antagonistas amparados em todas as instâncias sociais. Perante a também evidente incapacidade destas mesmas instâncias (sindicatos, instituições) encontrar uma solução justa e humana à situação infelizmente tão comum,não parece utópica a tentativa de um grupo di cidadãos em buscar soluções alternativas interrogando a polis, em plena agorà.
Com efeito, o êxito do processo, com soluções que no debate surgem diversas, justas no sentido de humanas, auto-sustentáveis e viáveis, já que ancoradas ao contexto local, mostra o essencial da participação cidadã – a assembléia dos indivíduos conscientes de seu direito/dever de legiferar e livre da imposição de delegas e maioria – no êxito de qualquer processo de gestão democrática de algo como uma cidade, nação ou planeta: metaforizando o lar, moradia do ser humano. Alertando-nos do risco de ter somente respostas que não transformam, mas repetem as fórmulas homologadas do liquidificador midiático, o teatro do Boal oferece a possibilidade de re-aprender a dizer NÃO e resistir, se opor, buscar alternativas, cada um com sua diversidade, seus desejos e escolhas: com a coragem de ser feliz.
BIBLIOGRAFIA
ADORNO, Th. & HORKEIMER,Max. Dialética do Esclarecimento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.
BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica, Arte e Política. Editora Brasiliense: São Paulo, 1985.
BOAL, Augusto. Estética do Oprimido. Rio de Janeiro: Garamond/Funarte, 2009
BRECHT, Bertold. Estudos sobre Teatro. Portugália: Lisboa, 1975, p.75 REVER CIT.
GOFFMANN, Erwing. La vita quotidiana come rappresentazione. Bologna: Il Mulino, 1969 (ed. orig. 1956).
HARDT, Michael & NEGRI, Toni. Impero. Il nuovo ordine della globalizzazione. Milano: Rizzoli, 2001
[1] Conforme Platão, sendo o homem um ser intermédio entre esfera animal e esfera divina, mundo real e mundo das idéias, ele participa com sua existência (irredutível a simples fenômeno) da transformação (
metaxis) entre mortalidade e imortalidade, repetição do erro e conquista da excelência, vicio e virtude. Esta é a dimensão propriamente humana.
[2] Psiché em grego indica seja o objeto que reflete e seja a alma humana e sua função auto-reflexiva.
[3] Viabilizado pelo MinC através do Prêmio Interações Estéticas e Residências Artísticas em Ponto de Cultura, realizado em parceria com o Centro Teatro do Oprimido (especialmente Barbara Santos) e em seguida, na etapa de Brasília, com o Ponto de Cultura ESTEC – Tecnologia Cênica e com a Cooperativa de Catadores de Lixo.
[4]Graças as novas curingas, já foram realizadas multiplicações em Moçambique, Argentina, Índia e várias cidades européias. Em Berlim, um núcleo permanente de Madalenas, guiado por Barbara Santos, está preparando um encontro mundial para 2012.
Ariane Mnouchkine e Juliana Carneiro, diretora e atriz du Theâtre du Soleil, são membros do Conselho Consultivo do Instituto Boal



Fórum das Letras discutirá a relação entre memória e esquecimento
Evento será realizado entre 12 e 15 de novembro e abordará questões ligadas à política, cultura e história, com participação de autores de diversas nacionalidades
A sétima edição do Fórum das Letras já tem programação definida. Sob o mote “Memória do Esquecimento”, o encontro deste ano será realizado entre os dias 11 e 15 de novembro, em Ouro Preto, e terá como eixo central a abordagem da memória artística e literária da cidade. As passagens de Elizabeth Bishop e do Living Theatre pela região terão destaque especial, bem como alguns dos maiores projetos literários fundados em Minas Gerais. Uma das presenças mais importantes em 2011 será a da atriz e escritora Judith Malina, que, há exatos 40 anos, foi expulsa do Brasil sob acusação de, juntamente com os demais integrantes do Living Theatre, difamar a imagem nacional em outros países, em um dos episódios mais controversos que a ditadura produziu no campo cultural. O Fórum das Letras é realizado pela Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) e toda a programação do evento é gratuita.
Esta será a primeira vez que a dramaturgia ganha espaço de destaque no Fórum das Letras. O trabalho será realizado com curadoria da professora e pesquisadora Alessandra Vanucci (UFOP), que centrou a programação em duas figuras-chave para entender o teatro como forma de manifestação política no Brasil: Judith Malina e Augusto Boal. No dia 12 de novembro, sábado, Cecília Boal e Judith Malina conversam sob mediação de Sérgio Mamberti sobre a vida e a obra de Boal. Em seguida, a psicanalista e viúva do dramaturgo se une à profa. Eleonora Ziller, curadora do Acervo Boal, para uma homenagem à sua memória, com intervenção de alunos de Artes Cênicas da Universidade. No dia seguinte, domingo, atores e alunos das Artes Cênicas encenarão um ato público em homenagem aos desaparecidos na ditadura nas ruas de Ouro Preto e no Cine Teatro Vila Rica, com texto inédito de Judith Malina.
A promoção da literatura brasileira e o estreitamento das relações entre países lusófonos seguem como uma das principais bandeiras do evento. Em 2011, este objetivo será reforçado pela participação da romancista Lídia Jorge e do poeta Álamo Oliveira, de Portugal (com o apoio do GT Artes e Humanidades, em conjunto com o Instituto Camões). A presença de agentes literários como Nicole Witt, da Alemanha; e Jonah Straus, dos Estados Unidos; do pesquisador e tradutor alemão Berthold Zilly e do presidente da Biblioteca Nacional do Uruguai, Carlos Liscano, será fundamental para discutir também as possibilidades de integração de esforços entre a literatura latino-americana e brasileira.
Como tradicionalmente acontece, a língua francesa terá lugar especial, com a presença do francês Henri Loevenbruck, considerado um dos mestres do thriller na França e músico conhecido em toda a Europa, e do togolês Kagni Alem, com sua respeitada obra a respeito das manifestações originadas da relação Brasil / África durante o período da escravidão. Para Guiomar de Grammont, idealizadora do evento, “esta aproximação é fundamental para Minas Gerais e Ouro Preto, pois a cultura francesa é orgânica na formação da cultura brasileira”.
Entre os brasileiros confirmados para o encontro, ganham ênfase Adriana Lunardi, Ana Maria Gonçalves, Arnaldo Bloch, Marcelo Tas, Eduardo Jardim, Marcia Tiburi, Miguel Sanches Neto, Ronaldo Correia de Brito, Rubem Alves e Max Mallman. Destaque também para Adriano Macedo, Branca Maria de Paula, Jeter Neves, Malluh Praxedes e Sérgio Fantini, integrantes do Coletivo 21, grupo de escritores mineiros criado em 2011 com o objetivo de estimular a troca de ideias e buscar novas formas de aproximação entre os autores, leitores e possibilidades do mercado literário.
Em 2011, o Fórum das Letras será resultado de um processo colaborativo entre professores dos cursos de Filosofia, Letras, Artes Cênicas, Jornalismo e Música da UFOP, com curadoria geral da professora Guiomar de Grammont. Para a idealizadora do evento, “o Fórum se consolida como momento de amostra do que de melhor tem sido feito no mundo literário e assume, cada vez mais, sua missão de defesa e promoção da literatura brasileira em nosso país e no exterior. A história e a memória de Ouro Preto e Minas Gerais são centrais nesta edição, pois a importância do Fórum das Letras encontra-se, sobretudo, no fato de se situar na antiga Vila Rica, cidade na qual tiveram origem alguns dos mais importantes movimentos literários do Brasil”.
De acordo com o pró-reitor de Extensão da Universidade, Armando Wood, cerca de 35.000 pessoas são aguardadas para esta edição do evento. “Esperamos que o Fórum ganhe proporções cada vez maiores e que cresça também nossa aproximação com escritores, editoras e, principalmente, com os leitores e a comunidade local. A memória de Ouro Preto merece ser valorizada, e é isso que pretendemos ao eleger o tema que norteará os debates e todas as homenagens que fazem parte deste encontro, como o centenário de Elizabeth Bishop, que aqui viveu durante tantos anos, e os 300 anos de Vila Rica”, afirma.
Homenagens
São diversas as homenagens previstas para o evento. A literatura mineira terá destaque especial, com homenagem à vida e obra de Rui Mourão e a participação de Frei Betto e Lucas Figueiredo no debate “As Minas Gerais: 300 anos de Aventura, Literatura, e fé”. Terão espaço ainda a comemoração de aniversários de projetos fundamentais para a cultura brasileira, como os 25 anos do Projeto Sempre Um Papo, comandado pelo jornalista Afonso Borges, e os 45 anos de fundação do Suplemento Literário de Minas Gerais, um dos mais importantes periódicos literários do Brasil.
O centenário Elizabeth Bishop (1911-1979) será celebrado por meio do Congresso Internacional “Deslumbrante Dialética: O Brasil no Olhar de Elizabeth Bishop”, promovido pela Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) em parceria com a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). O encontro será realizado entre os dias 9 e 12 de novembro, em Ouro Preto e Mariana, e se debruçará sobre a rica obra deixada pela americana, cuja vida foi marcada pela passagem pelo Brasil. O evento conta com coordenação da professora Maria Clara Galery e está voltado para professores universitários, graduandos e pós-graduandos (mestrado e doutorado) e as inscrições podem ser feitas pelo email congressobishop@gmail.com.
Programação paralela
Em 2011, o Fórum das Letras dará prosseguimento à programação paralela, marcada pela Via Sacra Poética – conjunto de eventos de música e poesia, composto pela realização de saraus, leitura de poesias, entre outros, sob coordenação de Flaviano Silva – e pelo Fórum das Letrinhas, importante conjunto de atividades voltadas para o público infanto-juvenil, que acontece ao longo do semestre nas escolas públicas de Ouro Preto e seus distritos. O Fórum das Letrinhas é centrado na promoção de debates com a participação de crianças e adolescentes, esquetes teatrais baseadas em literatura, distribuição de livros para escolas e ações educacionais, como oficinas e colóquios para educadores, com curadoria da professora e escritora Mônica Versiani.
Outro destaque será o Ciclo Bravo! de Jornalismo Cultural, organizado pela professora Marta Maia. O projeto, resultado de uma parceria entre o Fórum das Letras e a revista Bravo!, é voltado para estudantes de Comunicação de todo o país e tem como objetivo promover discussões a respeito da produção jornalística no campo cultural. Na edição deste ano estarão presentes os jornalistas Arthur Dapieve (O Globo), Eliane Brum (Revista Época), João Gabriel de Lima (Bravo!), Paulo Roberto Pires (Serrote) e Paulo Markun, entre outros, como palestrantes. Pela primeira vez, o evento contará também com a realização de cursos, com a participação de Paulo Roberto Pires na oficina “Jornalismo Cultural” e Mathews Shirts em “Crônicas”. As inscrições são gratuitas e podem ser feitas pelo site www.forumdasletras.ufop.br.
Em parceria com o Fórum das Letras, o Instituto Cultural Amilcar Martins (ICAM) expõe pela primeira vez sua rara coleção Mineiriana. Mais de cem obras – entre livros, revistas e documentos históricos – poderão ser vistas pelo público na mostra “300 anos de impressões”, que será realizada no Centro Cultural da Fiemg. Entre os destaques estão as primeiras edições dos livros de Marília, de Tomás Antônio Gonzaga. Duas outras joias expostas serão o Áureo Trono Episcopal e o Triunfo Eucarístico, que retratam as duas maiores festas barrocas do século XVIII. Do século XIX, destacam-se as coleções do escritor romântico Bernardo Guimarães e, do início do século XX, a obra poética do simbolista Alphonsus de Guimaraens. A curadoria conjunta foi feita pelo diretor do ICAM, Amilcar Martins Filho, pelo jornalista André Nigri, pelo crítico literário Cléber Cabral e pela ensaísta e crítica de arte Cristina Ávila.
Mais informações sobre a sétima edição do Fórum das Letras de Ouro Preto estão disponíveis no site www.forumdasletras.ufop.br.
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Fórum das Letras 2011
Ouro Preto, 12-15 de novembro 2011
TEMA: MEMÓRIA DO ESQUECIMENTO
Programação relativa aos dias 12 e 13 de novembro
12.11, às 19h conversa aberta Judith Malina – Cecilia Boal. Entrevistador: Sergio Mamberti.
às 20.30 BOAL: vida, arte, resistência
Participantes: Cecília Boal, profa. Dra. Eleonora Ziller (diretora da Faculdade de Letras da UFRJ e curadora do Projeto Boal na UFRJ). Mediadora: Alessandra Vannucci (DEART-UFOP). Intervenções de alunos do DEART-UFOP com cenas de textos dramatúrgicos de Boal (Projeto de Extensão: Madalenas, Teatro das Oprimidas).
Local: cinema.
13.11 às 13h JUDITH MALINA: vida, arte, resistência
Participantes: Judith Malina, Sergio Mamberti (Secretário de Políticas Culturais do MinC), prof. Dr. Zéca Ligiero (UNIRIO), Cecilia Boal, Brad Burgess e Thom Walker (Living Theatre), alunos e alunas do DEART-UFOP. Textos do Julian Beck, inéditos no Brasil e outros. Local: cinema
às 14h30 ATO PUBLICO EM MEMORIA DOS EXILADOS E DESAPARECIDOS SOB A DITATURA MILITAR. Local: Praça Tiradentes
Programação sob a curadoria e direção da prof. Dra. Alessandra Vannucci (DEART-IFAC).
Realização Forum das Letras em parceria com o Departamento de Artes Cênicas da UFOP.
Produção: Fernanda Bento, cell. 031-93242562
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*do blog ColetivoRJ Memória, Verdade e Justiça
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LIBERTAÇÃO DOS OPRIMIDOS
por Adaílton Medeiros
“Eu agradeço a essa plateia pela aula de cidadania que eu tive aqui, hoje.” Foi assim que o cineasta Zelito Viana encerrou o Programa Diálogos Com o Cinema, no Ponto Cine, no último sábado, 22/10. O filme exibido: Boal, vencedor do Margarida de Prata.
Como se não bastasse uma semana cheia de surpresas: Ponto Cine como destaque em artigo da Revista ESPM, da Escola Superior de Propaganda e Marketing, e em matéria do Globo Zona Norte. E, ainda, a repercussão da participação nas mesas do Seminário Novas Perspectivas para o Cinema Brasileiro, no 44º Festival de Brasília e da Audiência Pública da Assembléia Legislativa para a discussão de Políticas para o desenvolvimento do Circuito Exibidor Cinematográfico do RJ. Estávamos curtindo o gostinho de ter contribuído da construção, melhor, do acabamento do grande vencedor do Festival do Rio, o Filme “A hora e a vez de Augusto Matraga”, de Vinícius Coimbra.
O teste de público do primeiro longa de Vinícius foi realizado no Ponto Cine e, lógico, o mais novo diretor consagrado pelo maior Festival de Cinema da América Latina recebeu “piruadas” de todos os tipos e tamanhos. Afinal suburbano gosta de meter o bedelho em tudo, é metido a sabido e adora ocupar espaço, agora então que a tal “nova classe média” entrou na moda nos achamos. A prova está lá nos crédidos do filme, estamos todos orgulhos e não cabemos na nossa respiração.
Mas se fosse só isso. Para completar quem aparece para assistir ao “Boal”: Dona Maria Apareceida. Quem é a Dona Maria? Uma já tarimbada frequentadora do Ponto Cine, uma senhora comum de 75 anos. Quer dizer: comum até antes do Festival. Agora, Aparecida é uma estrela, talvez a maior do Ponto Cine.
Um dia a anônima Maria, ao ler um anúncio de classificados convocando pessoas que quisessem cantar uma música que marcou a sua vida, resolveu ligar para a produção de um filme. Mesmo descrente, foi chamada e, “de um dia para o outro”, como diz, ficou famosa. Aparecida é uma das personagens mais forte de “Canções”, de Eduardo Coutinho, vencedor de Melhor Documentário do Festival do Rio.
A nova estrela foi anunciada na abertura do evento, veio ao palco falar com a plateia e, como não podia deixar de ser, cantou. Foi aplaudida de pé e cumprimentada por todos, após a sessão.
E o Boal, onde entra nisso tudo? Na síntese. Fernando Pessoa dizia que Educação é erudição e Cultura, síntese. O Filme de Zelito Viana não é só uma homenagem a um dos maiores nomes da Cultura Brasileira, ou melhor, da Cultura Sem Fronteira, porque Boal foi um cidadão do mundo.
Antes de ser uma homenagem é um pito, um puxão de orelha: – como querer ser uma nação grandiosa se tratamos tão mal os nossos herois, condenando-os quase ao total anonimato?
Não sei se “Canções” entrará em cartaz no Ponto Cine. Torço para que sim, se não somente os privilegiados do bairro e de seu entorno, que estiveram na manhã de sábado no Cinema, vão ficar sabendo do feito da Dona Maria Aparecida.
Uma coisa instintivamente eu posso afirmar: hoje, Boal está para o conhecimento dos brasileiros, assim como a nossa cantora Maria está para Guadalupe. Precisamos virar o jogo. Zelito, obrigado. Sábado foi um dia de oprimidos sobre opressores. Foi um dia de libertação, de síntese. Um dia de suburbanos vencedores.
O Senado aprovou nesta quarta-feira (26) em votação simbólica a criação da Comissão da Verdade, que irá apurar violações aos direitos humanos entre 1946 e 1988, período que inclui a ditadura militar. O texto, que já havia sido aprovado pela Câmara em 21 de setembro, segue para sanção presidencial de Dilma Rousseff.
A comissão terá dois anos para produzir um relatório, com conclusões e recomendações sobre os crimes cometidos. Durante as investigações, o grupo poderá requisitar informações a órgãos públicos, inclusive sigilosas, convocar testemunhas, realizar audiências públicas e solicitar perícias.
Segundo o relator da proposta no Senado, senador Aloysio Nunes Ferreira (PSDB-SP), a comissão terá como objetivo “efetivar o direito à memória e à verdade histórica” e “promover a reconciliação nacional”.
“Temos uma ferida que não vai se fechar nunca, qualquer que seja o resultado da comissão”, disse o relator. “Queremos encontrar resposta para mistérios que convivemos e não podem persistir na democracia”, completou.
A ministra da Secretaria dos Direitos Humanos, Maria do Rosário, acompanhou a votação no plenário do Senado. Na saída, ela disse que este é um momento histórico. “É uma vitória histórica e inaugura uma nova etapa para o Brasil desde a redemocratização do país”.
Fonte: G1, 26/10/2011. Disponível em: http://g1.globo.com/politica/noticia/2011/10/senado-aprova-criacao-da-comissao-da-verdade-que-vai-sancao.html
*do blog Coletivo RJ Memória, Verdade e Justiça
http://www.coletivorj.blogspot.com/
O Coletivo RJ Memória, Verdade e Justiça é um espaço do qual participam diferentes entidades, movimentos e pessoas. Tem como proposição desenvolver atividades/ações relacionadas ao campo da Memória, Verdade e Justiça, tendo como diretrizes norteadoras as seguintes revindicações: Por uma Comissão da Verdade soberana e independente; Pelo cumprimento da sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos sobre a Guerrilha do Araguaia; Pela abertura de todos os documentos privados e públicos da época compreendida entre 1964/1988; Em defesa da memória dos lutadores e lutadoras da resistência à ditadura civil-militar. Para entrar em contato, basta enviar um mail para rjcoletivo@gmail.com
*do blog Coletivo RJ Memória, Verdade e Justiça
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O Instituto Boal quer contribuir para divulgar esssa informação. Convidamos também para a leitura do texto “O Suicídio do Artista”.
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Vivemos num tempo em que é possível destruir o Maracanã, símbolo maior da cultura popular do futebol, e destinar dinheiro público (R$12 milhões) para um festival privado de rock (Rock in Rio). Por outro lado, o Rio não dispõe de um conselho de cultura com participação da sociedade na definição das diretrizes culturais carioca. Talvez por isso essa cidade tenha sido capaz de erguer a ex-futura Cidade da Música por inaveriguáveis R$500 milhões!
No final da década de 1990 o genial Augusto Boal implorava por um patrocínio ao espetáculo “O Suicídio do Artista” (texto mais abaixo) e vaticinava: a cultura morreu!
Você está convidado para o debate:
A Morte da Cultura
Que ocorrerá no dia 10 de novembro, quinta-feira, às 18h30;
No auditório do Corecon-RJ (Av. Rio Branco 109 – 19º andar, Centro).
Com a seguinte programação:
Ø Apresentação dos dados orçamentários referentes às questões culturais;
Ø Debate com:
1. O Dr. Maurício Andreiuolo, Procurador da República na área de meio ambiente e patrimônio cultural;
2. A Profª. Claudete Félix, curinga do Centro de Teatro do Oprimido;
3. O Economista Felipe Ribeiro, FUNARTE;
4. O Conselheiro Paulo Passarinho, mediador.
Ø Debate livre.
O acesso é livre, gratuito e sem necessidade de inscrição.
Até lá,
Equipe FPO-RJ
O Suicídio do Artista
Augusto Boal
– “Graças a V. Exa., podemos agora escolher nossos artistas!” – disse ao Ministro da Cultura um empresário feliz, em pública reunião, faz dois ou três anos, agradecendo-lhe a privatização da cultura.
Tempos atrás, cabia ao Ministério e às Secretarias, com quase exclusividade, o patrocínio das artes. Hoje, vai-se de porta em porta, pires, pratos de sopa ou cornucópias na mão! – o tamanho de recipiente depende da intimidade que se tenha com o poder. Para as empresas, alegremente autorizadas a usar dinheiro de impostos na estética publicidade dos seus produtos, foi grande negócio. Para os artistas, creio que não: dou meu singelo testemunho.
No ano passado, graças ao CCBB, dirigi uma experiência teatral de certa magnitude, a SambÓpera CARMEN, na qual se respeitavam as melodias de Bizet casadas com nossos ritmos.
Sucesso extraordinário. Tanto, que o New York Times publicou tremenda reportagem recheada de fotos do espetáculo que, para o jornal, não tinha equivalente em mais de cem anos de vida dessa ópera – agradável exagero! O diretor do Festival Paris-Quartier d´Été acudiu correndo, e convidou CARMEN para se apresentar no coração de Paris, no Palais Royal, teatro de mil lugares, cercado pelo Louvre e pela Commedie Française, em julho passado.
CARMEN é, por excelência, a ópera nacional francesa: sua versão sambística, em Festival tão prestigioso, causou espanto e admiração. Felizes, resolvemos reincidir e preparamos outra SambÓpera: Verdi, LA TRAVIATA, homenagem ao quarto centenário do gênero Ópera que nasceu com a famosa EURÍDICE de Peri-Rinuccini, composta para celebrar o casamento do Rei Henrique IV com Maria de Médicis.
Maiores atrativos publicitários, impossível: samba, ópera, Verdi, Bizet, Times, Paris, Festival… Estávamos certos de que os empresários fariam fila à nossa porta, gritando ofertas como se estivessem em pregão da Bolsa de Hong-Kong.
Não estavam… Fomos à cata da produção com cinqüenta cópias do nosso Projeto, CDs e partituras. A maioria das empresas consultadas já disse que o projeto é belíssimo: “Você, Boal, sempre inventando, heim?… porém… não combina com os nossos produtos.” Os comerciantes querem vender: nada mais lógico. Loucura nossa pensar que uma heroína-prostituta, que morre tuberculosa no quarto ato, fosse capaz de vender espaguete ou pertences de feijoada, por exemplo. Deveríamos, talvez, ter procurado um fabricante de penicilina ou pneumotórax: erro nosso!
Diante da ameaça de novas e contundentes recusas, pensei que, se não são mais os artistas que determinam seus próprios caminhos e sim os empresários – a quem devemos respeitosamente ajudar a vender suas mercadorias! – mais cedo do que se pensa, nossa arte, já razoavelmente moribunda, estará à beira do falecimento total e definitivo, em cova rasa.
Como denunciar essa morte silenciosa? Pois que de outra coisa não se trata, se não de morte, o fato de se deixarem artistas sem patrocínio. De que serviria Van Gogh sem pincéis e tintas? Beethoven e Mozart sem piano ou cravo? Embora eu não saiba tocar nenhum instrumento musical, por mais reles reco-reco que seja, nem tenha intimidades cromáticas com pincéis e tintas, pensei em suicídio. O Suicídio do Artista Sem Patrocínio!
O exemplo me veio do Vietnã: monges se matavam afim de atraírem a atenção do mundo sobre a guerra iníqua. Conhecendo as necessidades da propaganda, não morriam confortáveis em suas camas, solitários, ou bebendo cicuta em canudinho, como Sócrates, entre bons amigos: eram espetaculares e, em praça pública, ateavam-se fogo às vestes, diante de flashes e câmeras de TV.
Pensei que o Suicídio do Artista Sem Patrocínio deveria seguir as mesmas normas de teatralidade daqueles religiosos. No Brasil, porém, as pessoas andam tão atarefadas, completando seus magros salários correndo de um emprego a outro, que um homem, esturricando-se ao sol do meio dia, no Largo da Carioca, talvez não atraísse o público desejado; talvez não desse Ibope. Imaginei, então, uma orquestra modesta que atraísse transeuntes para perto do suicida: eu, é claro, porque nenhum dos meus colegas – sempre tão solidários e mesmo achando a idéia ótima! – aceitou o sacrifício, por mais que eu insistisse. Deviam ter lá suas razões.
Sendo a música de boa qualidade – como é, no nosso caso! – talvez corrêssemos o risco inverso, atraindo demasiada platéia: seria então necessário construir uma plataforma sólida para o incendiado, e arquibancadas à prova de fogo para os ávidos espectadores.
Labaredas são mais atraentes e coloridas em silenciosa noite escura do que ao sol gritante. Portanto, nosso espetáculo pirotécnico deveria ser realizado depois do anoitecer, o que nos obrigaria à instalação de, pelo menos, 20 ou 30 refletores.
Para gerir esse belo espetáculo incendiário, necessitaríamos maquinistas, eletricistas, e teríamos que contratar uma boa agência de promoções, imprimir convites e um programa explicativo da filosofia do evento – pois que a tinha! – em bom papel de seda, etc. Sobretudo, fazia-nos falta um excelente produtor. Isso não se faz sem dinheiro.
Recorremos então aos Captadores de Recursos, profissão inventada pela atual Lei de Incentivo à Cultura, como contribuição ao combate ao desemprego: são especialistas encarregados de fazerem as empresas soltarem a grana.
Até hoje nenhum Captador respondeu, sequer, à nossa demanda. O maravilhoso e emocionante espetáculo do Suicídio do Artista Sem Patrocínio fica, assim, adiado sine die… por falta de patrocínio. Talvez para logo depois da silenciosa e recatada Morte da Arte e da Cultura.
Pede-se não mandar flores.
Se, porém, sua vontade de prestar esta última homenagem fúnebre à nossa cultura em coma for irresistível, sugere-se o envio de doações, ajudas, subvenções, etc., ou simples palavras de afeto, a algum jovem grupo de artistas cênicos ou plásticos, que saberão explicar porque escolheram dedicar suas vidas à arte e à cultura, ao invés de atividades mais lucrativas como os leilões e a Bolsa, nesta época em que o Lucro e o Deus-Mercado são a mais recente encarnação do bezerro dourado.