Augusto Boal

Blog

Freire e Boal – uma conexão afetiva

13.11.2019

por Fabiana Comparato

 

Paulo Freire dispensa apresentações para todos e todas que defendem educação como um ato político e revolucionário e que compreendem a importância de se confrontar a dialética opressor x oprimido tão enraizada em nossa sociedade. Seu papel fundamental como educador foi a de criar uma prática deeducação libertadora e de troca, capaz de gerar verdadeiras transformações sociais e políticas.  

No entanto, talvez por uma questão de terminologia, mais especificamente da noção de “Oprimido”, muitas vezes o trabalho de Freie e Boal são  quase que automaticamente relacionados. Traçar paralelos entre os trabalhos de dois pensadores críticos, compatrícios e contemporâneos, pode render um ensaio interessante a respeito de uma época e de uma onda de pensamento e ações propulsionadas por pessoas (e neste contexto poderíamos até incluir muitos outros, como Darcy Ribeiro, por exemplo) que contestavam e pensavam a formação da nossa, [ainda] extremamente desigual, sociedade brasileira, e que tentavam, por meio do desenvolvimento de teorias e práticas, criar mecanismos e dispositivos capazes de superar/questionar/subverter a lógica opressora já em curso.

Muitos, no entanto, erroneamente acreditam que Boal e Freire trabalharam juntos, ou até que Boal tenha escrito sua obra de maior ressonância internacional e nacional, o “Teatro do Oprimido”, influenciado ou com base direta na “Pedagogia do Oprimido” de Freire. Mas apesar das inúmeras interseções conceituais e práticas entre o trabalho dos dois, a relação de fato existente entre eles era essencialmente de afeto e admiração.

Ao que indica o riquíssimoacervo do InstitutoAugusto Boal podemos imaginar que Boal e Freire tiveram provavelmente uma primeira conexão ainda no início dos anos 60, no Nordeste. Época em que Paulo Freire residia em Pernambuco e encontrava-se no âmbito do Movimento de Cultura Popular (MCP), e que Boal era diretor do Teatro de Arena na cidade de São Paulo, e chega até o MCP através de peças do Arena.

O Movimento de Cultura Popular foi criado em 1960, como uma instituição sem fins lucrativos, durante a primeira gestão de Miguel Arraes na Prefeitura do Recife. O Movimento tinha como premissas conscientizar e ajudar na emancipação do povo através de educação e cultura. Segundo seu estatuto, seus objetivos eram: “Promover e incentivar, com a ajuda de particulares e dos poderes públicos, a educação de crianças e adultos; atender ao objetivo fundamental da educação que é o de desenvolver plenamente todas as virtualidades do ser humano, através da educação integral; proporcionar a elevação do nível cultural do povo, preparando-o para a vida e para o trabalho; colaborar para a melhoria do nível material do povo, através da educação especializada; e formar quadros destinados a interpretar, sistematizar e transmitir os múltiplos aspectos da cultura popular.”[1] 

Paulo Freire atuava em meio a esse contexto do MCP e da Universidade de Recife, onde foi o fundador e diretor do Serviço de Extensão Cultural (SEC), desenvolvendo seu método de educação que viria a se tornar mundialmente conhecido e reconhecido como uma forma de emancipação social, cultural e política. Um verdadeiro sistema de educação como prática de liberdade que influenciaria educadores do mundo todo.

Enquanto isso, em São Paulo, Boal aprofundava sua pesquisa de teatro político e de uma dramaturgia verdadeiramente nacional, que se relacionasse com a realidade nacional, dentro do efervescente âmbito do Teatro de Arena. Este foi um período em que Boal discutia e investigava sem trégua as maneiras de se radicalizar a dramaturgia e a experiência teatral, como tirá-las do lugar do privilégio e transformá-las em forma e ato acessíveis e de transformação. Neste contexto Boal resolve então, em 1961, seguir para o nordeste com uma das peças que dirigia, “O Testamento do Cangaceiro”, de Francisco de Assis, em busca de uma conexão mais direta com o povo, um povo brasileiro com o qual gostaria de dialogar, bastante diferente daquele que ia ao teatro em São Paulo. E para tal entra em contato com algumas organizações e instituições de ação popular da região, entre elas o MCP.

Ambos procuravam alguma maneira efetiva de democratização de suas práticas – educação e teatro -, capaz de torná-las agentes transformadores junto aos movimentos populares e as camadas da população, principalmente aquelas alijadas dos privilégios de classe.

No que tange o trabalho de Boal, mais especificamente a criação do Teatro do Oprimido, ele explica, já em retrospecto, em sua autobiografia, que “a estruturação desse método [o Teatro do Oprimido] é o resultado de um diálogo ideológico. Não inventei o Teatro do Oprimido sozinho, em minha casa, nem recebi as Tábuas de Deus: foi na interação com plateia populares que o TO foi nascendo, paulatino. (…) Estruturei o método através de décadas de trabalho. (…) O TO foi estruturado com base nas intervenções de plateias vivas, populares. Os desejos dessas populações organizadas estão integrados na própria estrutura desse método. Os desejos são dela, mas fui eu que os estruturei. Meu trabalho foi, em parte, interpretativo e sistematizador – não catequético, embora seja verdade que a relação artista-plateia popular é delicada[2].

A partir dessa análise do próprio teatrólogo podemos intuir que já em 1961, suas pesquisas dramatúrgicas também serviriam de fomento, fundamento, mesmo que no papel de processo, para se chegar ao livro/método/sistema que viria a ser conhecido como “Teatro do Oprimido”, que ganharia sua primeira edição em 1974. Assim como podemos deduzir que o trabalho e as experiências de Freire no início dos anos 60 em Pernambuco seguramente seriam essenciais para o desenvolvimento do seu método que ganharia corpo na primeira edição do “Pedagogia do Oprimido” em 1970. 

No entanto, apesar da óbvia ligação dos nomes conferidos aos livros/métodos de ambos, a história por trás de como se deu a escolha do título para o de Boal, nos ajuda, mais uma vez, a desmistificar a relação direta que muitos atribuem ao trabalho dos dois pensadores. É de novo em sua autobiografia que Boal nos oferece pistas do acontecido: “O Teatro do Oprimido, antes de ser editado, não se chamava assim. Por que mudou o título? Livreiros argumentavam que ninguém compraria um livro chamado “Poéticas políticas”: poesia ou política? Mudei para “Poéticas do Oprimido” em homenagem a Paulo Freire. Outra recusa: em que estante colocar? Poesia?[3]

Cecilia Boal, sua viúva e companheira de vida e trabalho, lembra que o livro foi editado pela primeira vez quando eles se encontravam em exílio na Argentina e que na ocasião o editor foi o responsável por decidir então pelo título final “Teatro do Oprimido”. Nome que ganharia vida própria e que hoje virou, para muitos, sinônimo de Augusto Boal. Tanto no caso do título sugerido por Boal quanto na opção decisiva do editor, a palavra oprimidoentrara como homenagem e não influência. 

Em entrevista para a revista Fórum em 2008, quando foi indicado ao Prêmio Nobel da Paz (leia a íntegra da entrevista aqui), Boal elucida por completo a questão: “Em um primeiro momento, achei [o título Teatro do Oprimido] até estranho, mas aceitei. Queria era ver o livro pronto e pensei “seja o título que for”. Agora, essa nossa relação não quer dizer que o Teatro do Oprimido tenha sido originado a partir da Pedagogia do Oprimido. Às vezes têm gente que pergunta se somos freireanos, outros se somos brechtianos… Mas nós também temos influência de Shakespeare, Molière e uma contra-influência de Aristóteles. Tem até influência daqueles de quem a gente é contra, isso também nos formou. Entendo, até, que as pessoas quando fazem a história dos movimentos às vezes precisam fazer uma simplificação, mas é importante ressaltar que o nosso trabalho e o do Freire têm uma identidade grande. Um contribuiu para o outro, mas não que um tenha gerado o outro. Eu tenho uma admiração imensa pelo Paulo Freire, pelo método dele, pelas suas idéias, pela combatividade, lucidez, sensibilidade, humanismo.”

Dos encontros que tiveram ao longo da vida como amigos, de poucos temos registro, embora todos sejam bastante marcantes. Como quando estiverem na casa de Boal e Cecilia em Lisboa, durante o exílio. O casal Boal recebia Freire, sua primeira mulher Elza, e Darcy para um almoço no mesmo dia em que a mãe de Boal chegava a Portugal portando a carta-cantada de Chico Buarque a Boal, “Meu Caro Amigo”, que se tornaria posteriormente umafamosacanção. Chico mandava notícias das coisas no Brasil, em 1976, na forma de uma fita cassete que foi escutada pela primeira vez por todos à mesa.

Ou na única vez em que Boal e Freire de fato trabalharam juntos, já em 1996, na Universidade de Nebraska, em Omaha, nos Estados Unidos. Neste ano ambos foram convidados a participar de um encontro anual da universidade americana chamado “Pedagogy and Theatre of the Oppressed Conference” (Conferência da Pedagogia e do Teatro do Oprimido), onde e quando palestraram e ambos receberam o título de Doutor Honoris Causa.

A grande admiração que Boal nutria por Freire, que o próprio revela na entrevista citada a cima, é também tornada publica e explicita ainda no ano de 1996, quando Boal proferiu uma linda homenagem à Paulo Freire na Camara de Vereadores do Rio de Janeiro, quando servia seu mandato. A fala foi publicada como texto em seu livro “Aqui Ninguém é Burro” (veja aquitexto no Blog sobre essa publicação). Infelizmente, esse mesmo texto logo seria reeditado com a morte de Paulo Freire no ano seguinte. Boal re-publicaria sua homenagem, com alguns adendos, sob o título “Meu último pai”. Paulo Freire morreu no dia 02 de maio de 1997 – e por alguma coincidência do destino, Boal viria a falecer exatos 12 anos depois, também no 2 de maio, do ano de 2009.

Conectados por afeto e admiração em vida e ainda hoje, como inspirações para todos nós – com Boal e Freire aprendemos a aprender.



[1]retirado do artigo “Paulo Freire e o Movimento de Cultura Popular na cidade de Palmares/PE em meados da década de 1960”, de Laudyslaine Natali Silvestre de Mourae André Gustavo Ferreira da Silva – UFPE– Universidade Federal de Pernambuco.

[2]Augusto Boal, Hamlet e o filho do padeiro. Rio de Janeiro: Editora Record, 2000.

[3]Ibid.