Augusto Boal

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Aqui ninguém é burro

05.07.2019

por Fabiana Comparato

 

“Nós estamos atravessando uma crise, a pior da nossa história. Esta é uma frase otimista, extremamente otimista, porque inclui a palavra “atravessando”. Supõe-se que, finda a travessia, a crise estará vencida e nós vitoriosos.” (p.105)

 

Neste último texto da série sobre o Mandato de Augusto Boal como Vereador da cidade do Rio de Janeiro, concluímos o tema trazendo luz a mais uma pérola de seu acervo e produção, o livro “Aqui Ninguém é Burro” (1996) – uma compilação de alguns de seus pronunciamentos na câmara de vereadores e do que ele indica como “desabafos” resultantes de sua época ocupando uma cadeira nessa casa legislativa.

Como revisitado no texto anterior, o Mandato político-teatral de Boal (que colocou em prática um verdadeiro exercício de democracia participativa através da prática do Teatro Legislativo), encarou diversos desafios que iam da insegurança das ruas as dificuldades de se estabelecer um trabalho de real base popular. Mas as batalhas travadas não eram só as externas à casa legislativa, eram também as individuais que Boal, como representante eleito, enfrentava ao pronunciar-se na tribuna da câmaraem relação aos projetos de lei apresentados (por ele, por sua bancada ou por outras).

Nesta arena, que por vezes lembra uma de teatro (apesar de fundamentalmente diferente de seu livre Teatro de Arena) e por outras uma de gladiadores, Boal via-se, com mais constância do que provavelmente gostaria, exposto a discursos políticos que, aos ouvidos de um democrata, soavam absurdos. Encontrava-se também tendo que defender o que, para ele, muitas vezes deveria parecer o óbvio – o interesse e os direitos da maioria da população. E é deste contexto que surge o título para o seu livro. Indignado, quando a casa aprovou uma lei que isentava empresas privadas de pagar certos impostos, o Vereador não se conteve e proferiu na tribuna: “Vossas excelências que votaram essa indignidade são todos ladrões, ou são burros!”. Ao que um dos vereadores, que havia ajudado a aprovar a tal lei, com tranquilidade e algo de “cara-de-pau”, retrucou no microfone: “Sua Excelência sabe muito bem que aqui ninguém é burro!”. Numa confissão intencional, ou não, do que poderia ser compreendido como indício de intenções escusas no ato de legislar, este episódio não só deu nome à publicação, mas nos oferece a tônica das batalhas travadas por ele nesta arena.

Considerando sua trajetória como teatrólogo e artista é de se imaginar que muitas dessas batalhas se deram no campo da cultura. Muitos dos textos que escolheu publicar revelam como Boal, no papel de vereador, levantava importantes debates e questões à cerca das políticas de arte e cultura sendo desenvolvidas no Brasil dos anos 90 – em termos de conceito de cultura, suas práticas, incentivos e caminhos para sua democratização.E que, como já parece lugar comum afirmar, infelizmente não nos soam tão diferentes das questões e dificuldades que mais uma vez voltamos a confrontar em 2019.

“(…) foi com espanto e horror que li nas páginas do JB, dia 8 de agosto, uma entrevista do atual secretário da cultura do governo federal e de um assistente seu. Nela se declara que o governo abrirá uma carteira de crédito para o financiamento de projetos artísticos e que “vamos tornar o negócio profissional: quem decidirá se um projeto é bom são os banqueiros; é uma questão empresarial”. Fala-se também em “transformar arte em bilheteria” e que “o governo delegará ao próprio sistema financeiro a fiscalização dos projetos artísticos”. Lei da selva! Todo o poder aos rinocerontes!

É impossível sentir menos do que repugnância diante dessas declarações que pretendem impor ao artista os critérios dos banqueiros, que valorizam o produto artístico pelo crivo de cruzados e cruzeiros, quando sabemos que a função do Estado, no campo da arte e da cultura, é precisamente a de se contrapor às leis dos mercadores e favorecer o florescimento de todas as formas culturais, independentemente da sua cotação na Bolsa.” (p. 141, 142)

O livro também evidencia pronunciamentos extremamente qualificados em conteúdo. O Vereador levava à tribuna falas diretas, sem vícios políticos, e, ao mesmo tempo, fortemente embasadas em traçados filosóficos e paralelos culturais, evocando clássicos da literatura e do teatro, assim como pensadores contemporâneos – de Aristoteles a Shakespeare, passando por Proust e Fernando Pessoa, entre muitos outros. Mas o teor altamente referencial de suas falas não parecia refletir uma espécie de erudição excludenteou elitismo intelectual, mas sim contextualizações de raciocínio naturais, compreensíveis mesmo para aqueles que nunca tivessem ouvido falar de qualquer um dos citados. Em retrospecto, diante do painel completo datrajetóriade Boal, essa forma parece representar o perfil de alguém que compreendia cultura, política e cidadania como uma prática única e que, por conseguinte, passeava sem medo pelas referências históricas desta amálgama de conhecimento para compreender e problematizar com embasamento a realidade a sua volta.

Em um de seus desabafos, Boal fala de amor e do conceito deste sentimento numa viagem, guiada por Shakespeare (mas também acompanhada de outrosfilósofos e escritores/poetas), para tratar da questão do poder. Por esse caminho Boal chega na fundamental luta das mulheres e dos poderes machistas que resultam em desigualdades de gênero e violências perpetuadas muitas vezes sob a falsa égide do amor. Esse mesmo tratado o leva também a tocar em importantes questões a cerca da centralização do poder societal nas mãos de “senhores feudais”, criando paralelos históricos com a Idade Média e linguagens teatrais:

O teatro isabelino, na Inglaterra – como o do Siglo de Oro, na Espanha – refletia essa necessidade histórica centralizadora de retirar aos pequenos senhores feudais seus poderes discricionários e atribuí-los a um poder central que disciplinasse maiores territórios. Como se no Brasil, por acaso, se realmente quiséssemos evoluir para além da Idade Média na qual vivemos, deveríamos retirar o poder dos coronéis latifundiários que mataram Chico Mendes, em morte anunciada, ou que destroem florestas amazônicas alegando que têm cupim, como afirmou o governador do Amazonas, Gilberto Mestrinho, mestre em miopia.” (p. 119 e 120)

 Os ecos históricos também são inúmeros. Apesar de seus pronunciamentos serem localizados em situações especificas de cidade e país, elas refletem também passado e futuro (nosso presente). Como se estivéssemos presos em um vórtex politico de país, ora soam assustadoramente como a época da ditadura militar –quandocensura, prisões arbitrárias, violências físicas e psíquicas eram perpetradas pelo Estado contra segmentos excluídos da população (por diferentes motivos) -, ora como testemunhos e reivindicações que caberiam hoje, em 2019, numa cidade já nem tão distante assim da dos anos 90.

Os exemplos ao longo do livro são muitos e constantes. Como o Rio de Janeiro das remoções e maquiagem:

 “Não é difícil perceber que os mendigos são removidos não por eles – para que sejam mais felizes, protegidos – mas por nós. (…) São deportados para que nossa sensibilidade seja poupada – e nossa culpa esquecida. (…) Mas nós, vereadores, estamos condenados; temos a obrigação de ver: é nosso ofício. Temos que ver e vimos a miséria humana que se esconde em Campo Grande [favela modelo], amontoada, doente. Temos que ver e, estou certo, veremos, que alguma coisa temos que fazer, com urgência, pressa, denodo. Nós aqui, nesta tribuna, temos que protestar, revelar, esclarecer, condenar o crime, o crime silencioso que estamos cometendo em Campo Grande – silencioso, porque ali não se fuzilam corpos, com estrépito: ali, estrangula-se as almas, sem ruído!

Alguma coisa temos que fazer. É certo que a coisa grande, coisa maior, é antiga e demorada. Desde as capitanias hereditárias, que se transformaram em hereditários latifúndios, a terra brasileira é posse de pouca gente, pisada por poucos pés. (…) Enquanto essa terra não for dividida, enquanto não for cultiva, mil rio da Guarda, mil Fazendas Modelos não serão suficientes para estancar o êxodo da seca e a fuga da fome. Inútil afogar mendigos, inútil deportá-los. Eles serão sempre mais, milhares e milhões.” (p.35 e 36)

 Ou como na eterna luta de parlamentares, verdadeiramente democratas (mesmo frente a ameaças e que levou, em 2018, ao brutal assassinato da vereadora Marielle Franco), pelos Direitos Humanos e contra a visão obtusa e obscurantista de muitos governantes que dizem não passar de uma retórica da esquerda para “proteger bandidos.

 “Direitos Humanos são direitos fundamentais que protegem todo e qualquer cidadão contra o arbítrio dos poderosos e condutas do Estado que violem normas internacionais.

(…)

Quem se insurge contra os Direitos Humanos, insurge-se contra a civilização e revela seu lado selvático. Os trogloditas não tinham moral e o seu direito era medido pelo peso da maçã que portavam. É o que deseja quem ataca o chefe de policia, Hélio Luz, com o argumento imoral de que se trata de um homem que respeita os direitos humanos.

Nenhum de nós pede clemência para criminosos, seqüestradores, traficantes. Pedimos lei, justiça. Civilizados, sabemos que aquele homem de uniforme que porta uma arma é o braço armado da Justiça, mas não o juiz. (…)

Declarar que tais direitos devem proteger apenas esta ou aquela categoria de gente é contra a Humanidade. Querem nos dividir em castas, relegando a maioria à condição de párias e guardando para si os benefícios brâmanes.” (p. 82 a 84)

 Ou até mesmo nas questões ligadas a democratização dos meios de comunicação:

 “Não é nosso desejo destruir a mídia; não é nossa opção terra arrasada. Mas pensamos que devemos democratiza-la. Reformar o agro e reformar o vídeo, a terra e a imagem dessa terra. (…)

Esse é nosso primeiro desejo, democratizar o que existe – a TV, cinema, video, teatro, música e dança, as artes, belas ou não, a ciência. E democratizar significa ainda hoje o que já na Grécia significava: Demo – Povo.” (p. 132, 133)

 Em suma, “Aqui Ninguém é Burro” é um convite para conhecer um pouco mais a respeito do posicionamento de Boal como Vereador – através de um rico arsenal de referências e pitadas de humor – em sua defesa da cultura, da arte e, sobretudo, dos direitos humanos e democráticos dos cidadãos do Rio de Janeiro.  

Assista também a colaboradores de Boal e atores lendo trechos de “Aqui Ninguém é Burro” (clique abaixo nos nomes para abrir os links):
Teuda Bara, integrante do Grupo Galpão, lê trecho do capítulo “As leis do mercado e a lei do leão”.
Inês Peixoto, integrante do Grupo Galpão, lê trecho do capítulo “Diretos Humanos são humanos”.
Celso Frateschi, figura de fundamental importância para o Teatro de Arena e o Teatro Jornal, lê o capítulo “Elizete: a mulher do espelho”.
Eduardo Luz, integrante do Grupo Galpão, lê trecho do capítulo “As leis do mercado e a lei do leão”.
Luiz Mário Behnken, economista e assessor de Augusto Boal neste período, lê o capítulo “Saudades dos ladrões de galinha de antigamente”.