Augusto Boal

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Um mandato com a coragem de atuar junto à população – o Teatro Legislativo em prática

19.06.2019

por Fabiana Comparato

 

Dando continuidade a série de textos, publicados no blog do Instituto, sobre Augusto Boal na política formal, entramos agora no trabalho desenvolvido durante seu Mandato como Vereador da cidade do Rio de Janeiro, de 1993 até o final de 1996. Fase compreendida também como mais uma etapa de sua pesquisa politico-teatral, conhecida como Teatro Legislativo, publicada durante o último ano de seu mandato, em 1996.

“Uma experiência de teatro popular se faz no “teatro das operações”, como se diz. O Teatro Legislativo está começando a ser criado no Rio de Janeiro. Mas que cidade é essa? Que país é esse?”  (p. 50)

É com a citação acima que Boal abre o terceiro capítulo da versão beta (como ele mesmo classificou, por se tratar de um trabalho/pesquisa em processo, com a necessidade de continuada revisitação) do seu livro “Teatro Legislativo”. Capítulo que leva o título de “A realidade”, por oferecer uma contextualização de seu mandato em relação a situação, então corrente, da cidade do Rio de Janeiro e do Brasil, mas que nos revela muito além de uma mera necessidade do autor de introduzir um pano de fundo histórico. Boal demonstra aquilo que parecia ser sua constante preocupação – ativamente exortada em campanha -, que para exercer plenamente seu papel de cidadão era necessário entender a sociedade à sua volta e seus variados níveis de realidade. Ao ocupar um cargo público seu dever era o de legislar em benefício da população e para tal procurar percebê-la e escutá-la não era apenas importante, mas essencial.  

Logo no início do livro Boal narra exemplos de graves situações de violência vivenciadas pela população país afora. E apresenta um Rio de Janeiro vítima de crimes resultantes de sua própria negligência perante sua avassaladora desigualdade social.

 Neste lugar e tempo estamos ensaiando o Teatro Legislativo. Como era de se esperar, enfrentamos problemas sérios: miséria e insegurança são os principais.” (p.60)

Além das dificuldades que qualquer político (principalmente aqueles com seriedade e imbuídos de verdadeiro espirito público) enfrentaria ao exercer o cargo de vereador em contexto tão complexo de cidade (semelhante ao de hoje), para Boal colocar em prática o Teatro Legislativo significava encarar uma outra série de desafios de ordem prática: financeiros (para juntar e manter grupos populares); de dispersão (no trabalho com grupos menos estáveis, como o de população de rua); de rejeição ao teatro (que ocorreria, por exemplo, com grupos mais duros, como os sindicais); e finalmente, político-partidários (frente aos outros políticos da casa).

As atividades do Teatro Legislativo foram colocadas em prática assim que iniciado o Mandato, e logo se depararam também com a insegurança das ruas. Grupos de trabalho eram frequentemente obrigados a interromper sua atuação por ameaças. Afinal esse era um dos poucos mandatos a fazer trabalho legislativo diário, na rua, junto à população e, por isso, se expunha a algumas das mesmas condições de insegurança e violência que o povo diariamente enfrentava.

A estrutura do Teatro Legislativo, ou do Mandato de Boal, era, por um lado, simples, no que tangia sua atuação direta e sem intermediários com a população, mas, por outro lado, complexa de etapas e processos. A participação nas comunidades incluía diferentes fases: juntar participantes (em “elos” e “núcleos”)[1], organizar e colocar em prática oficinas e ensaios e, por fim, realizar espetáculos – sempre utilizando o vasto arsenal do Teatro do Oprimido (ver mapa do Teatro Legislativo abaixo). A participação poderia acontecer também através dos mecanismos “Câmara na Praça” e “Mala Direta Interativa”.

Na “CÂMARA NA PRAÇA (…) o importante é que se reunam muitas pessoas interessadas pelo tema e que a sessão se desenrole mais ou menos como uma sessão da Câmara, com tempo cronometrado, ordem do dia, encaminhamentos, etc. O que se quer é saber a opinião da cidadania sobre os temas controversos e sobre os quais eu, como Vereador, deveria dar minha opinião ou parecer.

(…)

Os participantes devem não apenas votar mas explicar as suas posições, que deverão constar da Súmula. E temos observado que, quanto mais teatralizada a sessão, quanto mais parecida a uma sessão da Câmara, mais empenho têm os participantes em expor com precisão seus pensamentos e sugestões.

A MALA DIRETA INTERATIVA – apenas isso, mas isso tudo: mandamos, sempre que possível, milhares de cartas da nossa Mala Direta fazendo consultas sobre as leis a serem votadas. O curioso é que esse procedimento provoca intenso interesse e faz com que os cidadãos se sintam mais atuantes e não excluídos da política: dela são parte integrante.”  (p. 120 – 124)

E assim, a partir desses dispositivos, a voz do povo em escuta chegava ao gabinete e poderia resultar na elaboração de projetos ou emendas de lei, em decretos legislativos, medidas judiciárias ou ações diretas. O organograma do gabinete de Boal (foto abaixo) demonstra como os dispositivos do Teatro Legislativo eram estruturados de maneira bastante sólida e sistêmica dentro do funcionamento de seu Mandato.

Na realidade, essa estrutura era parte da investigação de Boal sobre as possibilidades da prática teatral como instrumento legislativo – do modus operandi do Teatro Legislativo, apresentado com minúcia ao longo do livro. Mas, de certa forma, também a extrapola, pois toca em uma questão mais ampla sobre forma dentro do modelo de democracia participativa.

Toda pesquisa teatral é mais importante na medida em que pode ser extrapolada para outras realidades. (…) Quando se pesquisa, o essencial é compartilhar essa pesquisa e os seus resultados. No caso do Teatro Legislativo, todos os espetáculos devem passar da comunidade para outras comunidades, para que todos saibam e compartilhem. 

Da prática, devemos passar a uma teoria, para entender o que estamos fazendo, para fazê-lo melhor e poder aplicar esta experiência em outros lugares: está é, aliás, a razão deste livro.“(p. 117)

Durante seu período como Vereador, essa forma (work in progress como ele mesmo define) resultou em ao menos 14 projetos de Lei e Emendas aprovadas. Como a emenda à Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) para se construir plataformas embaixo de orelhões, que partiu da sugestão de um grupo de cegos, que se machucavam constantemente nas ruas pela falta de indicação dos orelhões. Ou na, mais conhecida, emenda à Lei Orgânica que acrescentava garantia de proteção as vítimas e testemunhas de crimes e, no posterior, Projeto de Lei que criou o primeiro Programa Municipal de Proteção a Vítimas e Testemunhas de Infrações Penais.

Ademais, como Presidente da Comissão de Direitos Humanos, Boal prestava também assistência localizada durante seu Mandato, como no exemplo de sua“visita à prisão de mulheres Talavera Bruce que resultou num encontro com os juizes e no surpreendente mutirão dos juizes que trabalharam durante todo o fim de semana, sem interrupção, para analisarem todos os casos que nos haviam sido denunciados e libertaram as 21 presas que já tinham cumprido pena e continuavam encarceradas.” (p. 128)

Em suma, o Mandato de Boal através do Teatro Legislativo provou-se excepcionalmente expressivo, apesar de todos os desafios encontrados ao longo do caminho. Boal chegou até, enquanto Vereador, a sofrer uma campanha difamatória, encabeçada por um jornal, a fim de descredibilizar seu trabalho (veja texto do blog sobre esse tema aqui ). Mas sua atuação como representante parlamentar municipal persistiu firme e colhendo bons frutos até o fim. Tanto que tentou se reeleger, sem sucesso, para um Mandato consecutivo – dentro da campanha do PT que também tentava eleger Chico Alencar para prefeito do Rio de Janeiro. (Ver abaixo imagens de um boletim do Mandato de Boal, já em campanha para as eleições de 1997.)

Uma reeleição poderia, sem dúvida, ter levado a pesquisa de Boal ainda mais à frente. Mas seu primeiro e único Mandato foi o suficiente para nos deixar importante legado – um de experiências legislativas positivas alcançadas através de dispositivos teatrais visando o protagonismo cidadão, dentro de uma nova forma (in progress) de democracia participava. E como um legado versão beta, aguarda que outros, agora, deem prosseguimento a sua proposta de pesquisa continuada.

 

                                                                                                                             

 

 

 


[1]A prática do Teatro Legislativo se dava na organização do que Boal chamava de: Elos (conjuntos de pessoas da mesma comunidade que se comunicavam periodicamente com o Mandato expondo suas opiniões, desejos e necessidades) e Núcleos (elos constituídos mais formalmente como grupos de Teatro do Oprimido e que colaboravam ativa e frequentemente com o Mandato). Os núcleos podiam ser Temáticos (por exemplo de pessoas com deficiência, estudantes universitários negros); Comunitários (por exemplo de grupos do Morro do Borel, de Brás de Pina); ou Temático e Comunitário (ambos).