Augusto Boal

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O Artista Augusto Boal – Nelson Rodrigues

15.03.2019

Tenho um conhecido rico ou, mais do que isso, milionário, que não faz nada, maravilhosamente nada. Jamais viu a ponte do Leblon, porque o pôr-do-sol sempre custa um esforço visual. Mas, como todo sujeito que não faz nada, precisa dizer que faz tudo. E vive esbravejando: – Trabalho tanto que não vejo um teatro!”. Pausa, e arqueja: – “Não tenho tempo de ver um teatro!”.

Sempre que nos encontramos vem com a mesma conversa: -“Palavra de honra, não vejo um teatro!”. Até que um dia fiz-lhe a pergunta, à queima roupa: – “Desde quando não vês um teatro?”. Fui cruel e confesso. Por um momento não soube o que dizer. Abria a boca, mas o som não saía. Acabou admitindo que não via teatro desde a primeira fralda e antes da primeira chupeta.

Para esses que a partir dos gregos até os nossos dias jamais viram uma peça, talvez o nome e a figura de Augusto Boal não signifiquem nada. As para os que têm um mínimo de sensibilidade para o teatro, Augusto Boal representa muito. Na minha crônica de ontem dizia eu que ele é um dos maiores autores e diretores do drama brasileiro.

Se acham pouco, acrescentarei que é uma das maiores figuras do teatro em toda a América Latina. Muito bem. Há coisa de três ou quatro dias soube eu que ele estava preso, em São Paulo. Nada se compara ao meu espanto e nada o descreve, Preso por quê, a troco de quê? Se me perguntarem o que faz Augusto Boal, darei esta resposta: – “Faz teatro”. Poderão insistir: “Mas além de teatro?”. E eu: – “Só teatro”. Vamos admitir que o leitor continue: – “E o que pensa Augusto Boal? “. Minha resposta: – “Pensa em teatro”.

Pode parecer inverossímil. Mas o teatro exige exclusividade. No homem de teatro, a atividade política é o disfarce da frustração e da impotência artísticas. Mas o dramaturgo e o director, o ator e a atriz, o contra-regra e os bilheteiros – não sabem fazer outra coisa. Claro que, em qualquer arte, há os que a falsificam. Augusto Boal, porém, não foi, jamais um falsário.

Se um dia acabarem com o teatro, estejam certos de que ele vai sumir, desaparecer, como se jamais tivesse existido. Imagino que minha ênfase possa espantar o leitor. Mas explico: – conheço o Boal há trinta anos. Ele está fazendo quarenta anos e já completei meus 58. A primeira vez que o vi foi no Fênix, nos fundos do Palace-Hotel (e ambos já sumiram).

Vi aquele garoto na porta do tearto (realmente um garoto). Aos seus olhos eu era o “grande autor”. Apresentou-se como um admirador. Estava em cena a “minha tragédia carioca”, Vestido de Noiva. Boal passou dois meses assistindo a todas as representações. Não perdeu uma. Desde então começou uma amizade, que continua até hoje. Portanto, há trinta anos que sou testemunha auditiva e visual de sua fidelidade ao teatro.

Um dia eu o encontrei no velório de um conhecido. Não havia ainda a indignidade dos círios elétricos. Mas enquantos uns discutiam futebol, outros falavam mal do defunto – eu e Boal, num canto, cochicávamos sobre teatro. Ele vivia imaginando peças, histórias, personagens. Segundo deduzi, fazia, como Eugene O’Neill, vários dramas ao mesmo tempo. Eu o animava muito: – “Escreva, vá escrevendo. Teatro é fazer, fazer, fazer”.

Há pouco tempo foi chamado para dirigir e apresentar em 22 universidades americanas os espetáculos do nosso Teatro de Arena. A ONU também o convidou para realizar pesquisas sobre o seu sistema Corinda, que é rigorosamente original. Dirão os idiotas da objetividade que nada de novo se pode fazer dentro do teatro.

Isso é absolutamente falso. Tudo se pode fazer de novo. Eu diria que, apesar dos gênios, dos gregos, de Shakespeare etc. etc., o teatro é uma arte por fazer, uma arte que ainda está sendo feita. Portanto, o que se quer dos que o fazem é toda sorte de originalidades.

Poderão objetar que um gênio escreveu, certa vez, que a criação teatral estava reduzida a 37 situações. Era um gênio, mas não importa. Nada mais ingênuo, pueril, tolo ou mesmo obtuso. As 37 situações são, no mínimo 900 mil. Até aqui o que se viu foi o seguinte: – não há um texto, mesmo shakespeariano, que não tenha a influência decisiva da plateia. As duzentas senhoras gordas (e sentadas) de cada sessão estão ali como autoras. E não ocorre a ninguém que o public tem apenas a função de pagante.

Tudo o que ficou ditto acima exigiria, no mínimo, um ensaio de oitocentas páginas. Oitocentas páginas, e eu só tenho, escassamente, uma coluna. Mas voltemos ao dramaturgo preso. O Coringa é uma ponderosa invenção, um elemento novo no dinamismo do espetáculo. Invenção, repito, que está merecendo a curiosidade da crítica internacional.

Ah, antes que me esqueça: – um dos últimos convites pessoais que meu amigo recebeu foi para representar o teatro brasileiro em Nancy. Boal terá direito a dez representações, enquanto a Inglaterra, por exemplo, está limitada a três. Por aí se vê como fez nome, não apenas no Brasil, mas na Europa e nos Estados Unidos. Na grande nação norte-americana seu trânsito é livre. Lá dirigiu espetáculos, apresentou originais brasileiros, inclusive seus, e é considerado um dos grandes poetas dramáticos do Brasil e da América Latina.

Cabe a pergunta: – se é tão inocente, como o prendem? Vejamos. Eu sou, como se sabe, de uma insuspeição total. Venho com a Revolução desde o primeiro momento e antes do primeiro momento. Sim, muito antes do primeiro momento eu achava que só as Forças Armadas podiam salvar o Brasil. E de fato elas o salvaram. Portanto, é como revolucionário que estou dando meu testemunho sobre um homem preso como subversivo.

Repito: – o que fez meu amigo? Sua vida é uma apaixonada meditação sobre o mistério teatral. Se é crime “fazer teatro”, então que o prendam. Se é crime estudar teatro – prendam-no. Porque ele não faz, nem fará jamais, outra coisa.

Foi decretada a sua prisão preventiva. Por isso mesmo estou dando meu testemunho. Paro um momento e pergunto a mim mesmo: – o que é que eu teria mais a dizer? Não podemos interromper a obra que está amadurecendo no seu curacao, não podemos encerrar uma obra que irá tão longe, tão longe. Nem podemos perder as dez representações em Nancy.

Depois de trinta anos de convivência, e repito: – depois de trinta anos de intimidade quase diária, ouso afirmar que esse homem não fez nada senão teatro e é apenas o artista, em sua integridade irredutível. Desculpem que eu esteja repisando obsessivamente. Se for julgado, que seja absolvido. Amém. [18/03/1971]

 

(Texto retirado do livro O Reacionário, memórias e confissões, de Nelson Rodrigues)