Augusto Boal

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Carta de Boal à Elisa Larkin

11.05.2018

Abdias Nascimento e Boal se conheceram no Vermelhinho, que ficava na Cinelândia e que não existe mais. Entre cafés e conversas, Abdias foi grande influência para o jovem Boal dos anos 50.

Abdias lutou pela defesa dos direitos das populações negras, atuando em várias áreas. Em sua autobiografia Hamlet e o Filho do Padeiro, Boal nos conta como foi sua aproximação como o teatro negro:

Foi no Vermelhinho que conheci Abdias. Antes, minha relação com os negros era de piedade: Sentia pena dos negros da Penha. Depois, passou a ser de admiração: Como era possível, cercados por tanto preconceito, que os negros sobressaíssem, fosse no que fosse? No teatro, por exemplo, personagem negro era escravo ou criado. Para o papel de Otelo, nem pensar! Pele: estigma!

Meus personagens passaram a ser menos piegas e mais revoltados. Passei a gostar de subversivos combatentes. Abaixo a melancolia!

Boal escreveu e dirigiu peças para o Teatro Experimental do Negro, teatro proposto por Abdias Nascimento, que enaltecia a cultura negra.

Em 2004, Boal escreve uma carta para Elisa (viúva de Abdias Nascimento), parabenizando Abdias pelos seus 90 anos. Nessa carta, Boal se desculpa por não poder comparecer ao aniversário do amigo e escreve que vai deixar guardada a data de 15 de Março de 2014, quando Abdias completaria 100 anos.

Infelizmente Boal acaba nos deixando antes disso, antes mesmo do que o Abdias.

 

Carta do Boal à Elisa:

“Quinta-feira, 18 de março de 2004

Querida Elisa,

Não pude voltar ao Brasil a tempo, nem para os 90 anos do Abdias nem para os meus 73, no dia seguinte.

Foi pena: Abdias é o meu mais antigo querido amigo, não nos conhecemos desde 1950 – faz mais de meio século!

Abdias me ajudou muito no meu começo em teatro: lia minhas peças e me dava conselhos, sempre úteis, não só do ponto de vista teatral mas, o que era para mim mais importante, do ponto de vista Ético e político.

Eu tinha um contato direto com a pobreza, morando na pobre Penha daquela época, mas foi o Abdias que me ensinou a compreender as causas daquela pobreza. Eu via e odiava o racismo, explícito ou disfarçado, mas foi o Abdias que me ensinou a compreender as razões e a extensão, às vezes até mesmo inconscientes, do racismo brasileiro.

Não esqueci, nem vou esquecer nunca, as conversas que tínhamos, vez por outra, tomando café de pé, em frente ao Vermelhinho, e que tanto me ajudaram na minha formação.

Abdias me ajudou muito, não só a mim mas a muito mais gente – gerações! Não só com aquilo que nos dizia com veemência – Abdias sempre foi um apaixonado! – mas principalmente com o seu exemplo de vida, de integridade, de trabalho: era impossível não ser influenciado por ele.

Foi pena que eu não tenha podido estar presente na festa do seu 90oaniversário. Mas o que me anima é que já marquei na minha agenda o dia 15 de março de 2014: ao Centenário, com toda certeza, quero ir lhe dar um fraterno e agradecido abraço.

Com todo o carinho do Augusto Boal”

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