Augusto Boal

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O golpe me fez nascer

28.11.2014

por Julian Boal – via Carta Capital

Dizer que o golpe impactou a minha vida seria pouco. De certa maneira, o golpe é que me fez nascer. Afinal o golpe é que fez que meus pais tivessem que fugir para Argentina, onde fui concebido e nasci.
O golpe é o que faz com que até hoje, em qualquer língua que fale, eu tenha sotaque. Nos dois países em que vivi mais tempo meu nome causa estranheza na maioria. De tantas vezes que me perguntaram de onde venho já tenho uma resposta pronta para tentar explicar os vais e vens da minha vida em menos de um minuto. Aqui no Rio é comum eu receber volantes para conhecer Angra dos Reis ou ver o Cristo Redentor. Nas mesas dos bares nem fico mais impaciente quando me dão o cardápio em inglês.
O golpe me fez nascer, nem lá, nem cá. Tenho o costume desse entrelugar desde sempre. Em casa passava tanta gente que não falava francês que, do alto de uns seis anos de idade, proibi que se falasse outra língua em casa. Não fui obedecido. Os amigos que passavam com malas e que ficavam meses por não ter aonde ir não iam ficar sem falar, tinham tanta coisa para contar. Lembro-me de alguns, lembro de conversas interrompidas quando eu chegava, certamente para não “traumatizar o menino”. Não me lembro o que diziam, mas alguma coisa devo ter compreendido. Quando era pequeno, eu achava que era parte do crescimento normal de qualquer pessoa ser presa, torturada e fugir do seu país. Eu tinha certeza que isso ia acontecer comigo quando eu crescesse.
Não aconteceu. Não vou dizer que lamento, não tenho nenhuma atração em ser mártir ou no martírio dos outros. Vi tanta gente que sofreu na mão do Estado que sei que isso não é em si prova de coragem ou de justeza de linha politica. Mas na repressão de hoje tem algo que eu não entendo. A de ontem era uma homenagem do vício à virtude. O que se reprimia ao matar militantes era a possibilidade que outro Brasil surgisse, a brutal crueldade dos militares tinha algo de um exorcismo contra o “espectro do comunismo” que naquela altura parecia rondar a América Latina inteira. Mas hoje, quando se mata centenas e centenas, anos após anos, o que motiva esta crueldade? Qual é o motor desta nova violência de Estado?
Também não tive que sair fugindo de nenhum país correndo. Meu irmão, sim, teve que fazer as malas antes do desejado e voltar para o Brasil com a família. O governo francês tinha acabado de fazer umas leis que ‘desfrancizaram’ meu sobrinho. Ele, que nasceu antes dessas leis, já não podia mais pedir a nacionalidade e hoje quase não fala a língua do país onde viveu seus três primeiros anos. Claro que isto não tem a violência de ter todos seus pertences revirados pela polícia quando você não está em casa, mas, eu garanto, não é indolor.
Me parece que a geração dos meus pais via o futuro como um cruzamento cheio de estradas que se podiam trilhar e que para fazer essa caminhada tinha que se incluir a todos. A minha geração vê o amanha como um tobogã, daqueles com uma descida bem íngreme, só que não se vê com muita clareza o ponto de chegada. Vamos a toda velocidade em direção a algo que não sabemos o que é. Pensar no futuro, para aqueles da minha idade, muitas vezes só é sinônimo de pensar na carreira. Claro que vivo numa saudade de um momento que nem vivi onde o amanhã era um leque bem aberto de possibilidades.
Sei que este momento passou e que não podemos cair na tentação de fetichizá-lo, não podemos fazer como este jovem que apareceu na capa do Globo, com boné do Che Guevara e camisa estampada com a cara do Dirceu. A história não se repete, ela só transforma em personagens de farsa aqueles que acreditam que não há nada de novo sob o sol. Os exemplos de ontem tanto podem ser um acúmulo quanto um obstáculo. Temos que decifrar urgentemente a esfinge do momento presente. Só assim, talvez, o leque volte a se abrir.

*Julian Boal é filho do dramaturgo Augusto Boal, exilado pela ditadura. Seu depoimento é parte do especial do site de CartaCapital que marca os 50 anos do golpe

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