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"A lógica da meritocracia e da competição não nos agrada"

25.03.2014

Fernanda Azevedo em cena, na peça Morro como um país

Por Eduardo Campos Lima
No dia 18 de março, a atriz Fernanda Azevedo, da Kiwi Cia. de Teatro, recebeu o prêmio de melhor atriz na 26ª edição do Prêmio Shell, em São Paulo. A premiação se relacionou ao seu trabalho na peça Morro como um país, que esmiúça os elementos constitutivos da ditadura brasileira – e de outras ditaduras do século 20 – e os relaciona com suas permanências no presente.
A atriz trocou o discurso padrão de agradecimento pelo protesto, lendo um pequeno texto do escritor uruguaio Eduardo Galeano:
“No início de 1995, o gerente geral da Shell na Nigéria explicou assim o apoio de sua empresa à ditadura militar nesse país: ‘Para uma empresa comercial, que se propõe a realizar investimentos, é necessário um ambiente de estabilidade. As ditaduras oferecem isso'”.
Na entrevista a seguir, Azevedo fala sobre a decisão da Kiwi de utilizar a ocasião para se manifestar e sobre a relação do protesto com a peça do coletivo, que terá uma curta temporada de 26 de março a 17 de abril, no CIT-Ecum, em São Paulo (rua da Consolação, 1623, quartas e quintas, às 21h).

O que representa o Prêmio Shell, na sua opinião?
Achamos importante o reconhecimento dos pares, da categoria teatral, mas não consideramos que os prêmios sejam a melhor forma de expressar este reconhecimento. A lógica da meritocracia e da competição não nos agrada. Preferimos políticas públicas de cultura, permanentes e transparentes, que contemplem projetos artísticos e possibilitem aos grupos e artistas trabalhar com dignidade e sem ter que responder aos caprichos do departamento de marketing de uma empresa patrocinadora.
O caso do Prêmio Shell ganhou importância justamente espelhando a lógica da competição e do individualismo (fora o prêmio de revelação, todos os outros são para categorias individuais).
A Shell, ao tornar-se a anfitriã desta festa, segue o padrão neoliberal de funcionamento da nossa sociedade onde grandes empresas, nacionais ou multinacionais, muitas delas violadoras de direitos humanos e ambientais pelo mundo afora, “limpam sua barra” através da cultura ou de ações benevolentes.
Como se deu a decisão da Kiwi pelo protesto?
Toda decisão é tomada coletivamente, pelo grupo. Pensamos sobre o que significava receber não só o prêmio, mas também o dinheiro. Chegamos à conclusão de que esta era uma oportunidade de fazer um discurso crítico que alcançasse mais pessoas, caso ganhássemos o prêmio. Um discurso que fosse coerente com nossa atuação política e artística e que, no ano do cinquentenário do golpe, pudesse trazer à tona, em carne viva, as contradições da nossa sociedade.
Por que foi escolhida a citação de Eduardo Galeano?
O Galeano é um dos escritores vivos mais coerentes na crítica da sociedade capitalista, além de ser um ativista incansável em favor das liberdades e da poesia. Seu texto sobre a Shell é um exemplo de militância pelas informações que traz e pela qualidade da análise.
Como esse protesto, em forma e conteúdo, se relaciona a Morro como um país?
Morro como um país trata da violência institucional, do conceito de “estado de exceção”, investiga não só os documentos do passado ditatorial do Brasil e de países latinoamericanos, mas também faz a relação dos crimes cometidos pelo Estado no passado com a sociedade desigual e as torturas e crimes cometidos nos tempos atuais.
O apoio de empresas e empresários às ditaduras é assunto das Comissões da Verdade atuantes no país. Existem documentos que comprovam que a nossa ditadura e o golpe foram apoiados e financiados por dinheiro privado. Foi uma ditadura civil-militar, neste aspecto. Este mecanismo deve ser denunciado a todo o momento se quisermos realmente viver numa sociedade justa e livre. Até porque as empresas e famílias ricas que detêm o poder há muitas décadas e que, por interesses comerciais, integraram-se ou financiaram o regime autoritário, são as mesmas que continuam detendo grande parte do capital e do poder ainda hoje.
O teatro que fazemos pretende ser um espaço de desvelamento e análise social e nós, artistas, não estamos descolados da realidade, somos seres políticos e podemos interferir criticamente.
Em 2011, o coletivo Dolores Boca Aberta Mecatrônica de Artes também fez um protesto contundente ao receber o prêmio. Como vocês avaliam a cobertura de imprensa do prêmio e dos protestos?
Me parece que, em geral, os jornalistas e as pessoas que escrevem nas redes sociais estão mais interessados na “polêmica”, na “coragem” de falar em público algo que, diga-se de passagem, todos já sabem; em quem é essa tal de Fernanda Azevedo, qual a sua trajetória profissional e pessoal; se deveríamos ou não ter aceitado o prêmio e o cheque; se temos medo de receber retaliações etc. Mas não vemos quase ninguém falando sobre o “tema” do discurso.
Discute-se muito pouco o que foi denunciado. O que significa ter uma empresa como a Shell como responsável pelo prêmio mais importante do teatro brasileiro hoje. Este mesmo teatro, ou parte dele, que um dia combateu a ditadura com todas as suas armas, hoje tem como espaço de encontro e festa um evento patrocinado por uma multinacional petrolífera.
Termino com um trecho da peça Calabar, de Chico Buarque e Ruy Guerra, que me dá esperança no poder do teatro como instrumento de luta:
Um dia este país vai ser independente. Dos holandeses, dos espanhóis, portugueses… Um dia todos os países poderão ser independentes, seja lá do que for. Mas isso requer muito traidor. Muito Calabar. E não basta enforcar, retalhar, picar… Calabar não morre. Calabar é cobra-de-vidro. E o povo jura que cobra de vidro é uma espécie de lagarto que quando se corta em dois, três, mil pedaços, facilmente se refaz.