Augusto Boal

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O grande acordo internacional de Tio Patinhas em cartaz em Buenos Aires

07.12.2013

O grande acordo internacional de Tio Patinhas, de Augusto Boal, está atualmente em cartaz em Buenos Aires. Abaixo, seguem as três primeiras cenas da peça, escrita na Argentina nos anos 70.

O grande acordo internacional de Tio Patinhas

Esta peça pode ser feita com cada ator representando um personagem diferente, como pode também utilizar o sistema coringa, em que nenhum personagem é representado pelo mesmo ator em duas cenas sucessivas. Neste caso, são necessários apenas 10 ou 12 atores. Pode-se ainda optar por uma solução intermediária: os personagens mais característicos podem ser representados
sempre por um mesmo ator e todos os demais em rodízio.
O Teatro pode ter o palco italiano convencional (como aconteceu na produção argentina), ou a forma de arena (como na Colômbia) ou ainda um espaço fragmentado (Itália) com interpretações de espaço para espectadores e personagens.
O importante é que as ideias passem, e que o façam da forma mais bonita e mais eficaz possível.

  1. Introdução

CORINGA – Era uma vez um grande e belo país onde todos eram felizes.
Os banqueiros e os bancários, patrões e operários,
capitalistas e se sem-vintém,
militares e estudantes,
todos eram muito felizes e não havia luta de classes.
Que bom!
Todos eram muitos felizes precisamente porque não havia luta de classes. (BEATIFICO).
As prostitutas e os mendigos,
desocupados, aposentados
famintos e famélicos,
doentes das doenças mais terríveis,
mais incuráveis,
das doenças mais insidiosas
e também das mais imorais
todos,
todos eram muito felizes,
porque não havia luta de classes. (MARAVILHADO).
Que Bom!
Até que um dia, (APREENSIVO),
─ e há sempre um dia em toda história!
sempre chega um dia! ─
um dia desceram à nossa querida Terra uns seres estranhos,
cientificamente chamados
STRANGE CREATURES OF OUTER WORLD! ─
Estranhas Criaturas do Espaço Sideral!
Elas chegaram, estranhas,
e estranhamente se esconderam,
e estranhamente ninguém de nada suspeitava,
porém elas ali estavam.
E, como todos os dias,
em todas as suas vidas,
todas as pessoas seguiam suas rotinas.
como o Tio Patinhas, o conhecido milionário,
que nada suspeitava e, como sempre,
rezava.
2.DEPÓSITO DE DINHEIRO.TRILHÕES DE MOEDINHAS ESPALHADAS PELO CHÃO, OUTRAS VOANDO COMO INOCENTES ANJINHOS.TIO PATINHAS ESTÁ DE JOELHOS DIANTE DO SEU DEUS, UMA BELA MOEDA ANTIGA, ILUMINADA. FUNDO MUSICAL TERNAMENTE RELIGIOSO: A MARCHA DA MARINHA NORTE-AMERICANA, EM ORGÃO. ATMOSFERA DE PROFUNDA MEDITAÇÃO, DE COMUNHÃO.
TIO ─ Meu Deus, meu Deus, que maldição! Cada vez que chega o inverno eu me desespero! Meu depósito de dinheiro se encolhe com o frio! Quase um tricentésimo de milésimo de milímetro a menos em casa moedinha! Quase, quase! (CHORA).
DEUS—MOEDA ─ Tem fé em mim, Patinhas, e eu tenho quase a certeza, quase quase se não me engano, que tu te salvarás a ti mesmo!
Com muito esforço e perseverança!
TIO ─ Deus Todo Poderoso, salvai-me vós, socorrei-me! Eu morro!
DEUS-MOEDA ─ Ergue-te, filho meu: um homem self-made como tu, nada deve temer!
TIO ─ Sinto um vento gelado que me percorre a coluna vertebral, sinto o gelo da pobreza, eu me sinto morto, embalsamado, terminado, caput! Socorro! Socorro!
DEUS-MOEDA ─ Todos os males do capitalismo tem sempre uma solução, Patinhas uma solução de força.
TIO ─ Qual meu bom Deus, qual, qual?
DEUS-MOEDA ─ Sempre a mesma, filho meu, tens que aumentar teus lucros!
TIO ─ Como? Quando? Onde? Quanto?
DEUS-MOEDA ─ Primero, até mesmo no teu próprio país, aqui e agora, e em toda tua parte, que todos apertem os cintos, com toda a austeridade! E depois, é preciso aumentar o teu Império, ao norte ao sul, a leste e a oeste, a torto e a direto, para que nele nunca mais o sol se ponha! Invade, ocupa, estende, avança, investe! Tens sempre uma nova solução, Patinhas: a mesma!
TIO (FAZ O SINAL DA CRUZ, ALIVIADO, RECONFORTADO, COMUNGADO) ─ Em nome do dólar, do ouro e do traveler’s check, amém! (AMÉM SE TRANSFORMA EM CONTINÊNCIA).
3.ESCRITÓRIO DO TIO PATINHAS. SEUS FUNCIONÁRIOS GOZAM DE MERECIDO REPOUSO E LAZER DURANTE AS HORAS DE TRABALHO.
CORINGA ─ E o Tio Patinhas obedeceu a voz do seu Deus! Religiosamente!
TIO (ENTRANDO NO ESCRITÓRIO) ─ Parem, parem! (GRITA FURIOSO).
Canalhas, parem! Vagabundos, energúmenos, viciosos, parem! (PÂNICO).
FUNCIONÁRIOS ─ Que foi? Quem? Eu? Por Que? Meu Deus!
TIO  ─ Traidores! Traidores!
FUNCIONÁRIO ─ Que foi que aconteceu, Tiozinho? Conta pra gente.
TIO ─ Mostre esse papel! Mostre! (UM FUNCIONÁRIO LEVANTA UM PAPEL KLENEX DO CHÃO). Usado de um lado só. Quantas vezes tenho que dizer que até o papel higiênico deve ser usado DOS DOIS LADOS! O papel higiênico usado dos dois lados representa uma economia de exatamente cinquenta por cento! Astronômica! E essa água??? Por que vocês bebem tanta água desnecessária?
FUNCIONÁRIO (ASSUSTADO) ─ A água é grátis!
TIO ─ Grátis???!!!  Ignorantões! Por isso é que vocês não vão ganhar nunca dinheiro na vida! A água é grátis, mas o cano não é!!! Quanto mais água vocês tomaram mais se gasta o cano d’água, mais vocês vão suar e mais papel vão gastar para secar o suor! De hoje me diante está proibido beber água nos meus escritórios! (TODOS SENTAM). E essa bunda, minha senhora? Pare de mexer essa bunda na cadeira.
SENHORA ─ A bunda é minha, e com ela eu faço o que eu quero!
TIO ─ A bunda é sua, mas a cadeira é minha! Pode esfregar a sua bunda na sua cadeira tanto quanto quiser, mas na minha não! Fique de pé. Quer uma prova. (EXAMINA A CADEIRA). Exatamente o que eu pensava. (MEDE-A COM UM METRO). Exatamente, exatamente um décimo de milímetro mais baixa. Isso quer dizer que dentro de 17 anos eu terei que trocar o assento desta cadeira. Porém se a senhora tivesse mais cuidado, se colocasse a sua desproporcional bunda na minha delicada cadeira com mais cuidado, com mais atenção, sem trepidar (FAZ A DEMOSTRAÇÃO ELE MESMO), poderia economizar diversos milésimos de milímetros por década, e esta cadeira seria trocada dentro de 18 anos e não 17.
SENHORA ─ O Senhor tem razão: eu não tinha pensado nisso.
TIO ─ O meu dinheiro, o meu dinheiro!!! Passei sono, frio, fome, sofri todos os males, tormentos e tristezas, vivi todas as tragédias para construir penosamente o meu depósito, e todos os invernos, todos, o meu dinheiro encolhe! Ai de mim, ai de mim! Onde está o meu gerente!??
GERENTE ─ Aos vossos pés, senhor!
TIO ─ Estude geografia: quero saber onde posso ainda investir!
GERENTE ─ O senhor já é dono de todas as fabricas do país! Comércio e indústria, ações. Eleições e transações, tudo já lhe pertence, direita ou sub-repticiamente, como nome posto ou preposto, aqui e ali já é tudo vosso, Tio Patinhas.
TIO ─ Não é possível! Alguma bagatelinha ainda deve estar em mãos de mouros. Por exemplo: este café? (BEBE).
GERENTE (SORRIDENTE, COMPLACENTE) ─ Pertence à MacPato’s Coffe Consortium.
TIO ─ Pensei que era brasileiro…
GERENTE ─ Priscas eras! Os tempos agora já são outros. Tudo é vosso. MacPato’s Petroleum Standard, Macpato’s Motores de Automóveis, Todos os Motores e Motores em Geral, MacPatos’s Cosméticos e Sabonetes Nove entre Cada Dez Estrelas Que Estais No Céu, MacPato’s Estradas, Portos e Aeroportos, Minérios e Diamantes, MacPato’s Hotéis e MacPatos em Lata, MacPato’s etcétera e MacPato’s Em Geral, MacPatos… (CONTINUA DIZENDO COISAS, OLHANDO PARA OS ESPECTADORES E DIZENDO TODAS AS COISAS QUE VÊ SOBRE ELES: ROUPAS, SAPATOS. ETC.) (O TIO PATINHAS SOFRE TERRIVELMENTE ENQUANTO ESCUTA).
TIO ─ Basta, basta, basta! Não minta! Existem ainda alguns setores onde não entro porque o chauvinismo atávico não me permite!
GERENTE ─ Qual?
TIO ─ Imprensa por exemplo.
GERENTE ─ Se por outra razão não fosse, é o senhor que manda publicar todos os anúncios! E ainda por cima p senhor é o proprietário exclusivo de todas as agências de informação reunidas no trust MacPato’s Misinformation Service. (PASSA UM MENINO VENDENDO AMENDOIM).
MENINO ─ Amendoim, tá quentinho!
TIO ─ Menino, eu preciso comprar, está me dando uma coisa, eu tenho que comprar, que continuar comprando, comprando tudo, tudo que vejo! E esta parece que é a única coisa neste país que parece que ainda não é minha. Me vende o teu carrinho?
MENINO ─ Não posso, não é meu!
TIO ─ De quem é?
MENINO ─ Macpato’s Carrinhos de Amendoim Assossiation.
TIO (GRITO DESESPERADO, DE CORTAR O CORAÇÃO) ─ Que desolação! Todo este país já é meu! Fim de linha! Aqui acabou-se a min há vida, aqui já não posso enriquecer! Comprei, já não posso comprar! Havia uma só solução, a mesma, investir: já não tenho onde. É a morte! Meu Deus, meu Deus, que devo fazer?
DEUS—MOEDA (ACENDE-SE SEU HALO LUMINOSO) ─ O que foi que eu disse? Busca outras terras onde habitem nativos em estado bem primitivo. Trata de explorá-los sem piedade, e traz muito ouro pra tua casa, e assim seu depósito tornará a crescer!
TIO ─ É isso que eu vou fazer! Reserva já um avião da MacPato’s Airlines System, pergunte à MacPato’s Travel Agency onde é que fica o país mais distante e mais nativo, com bons selvagens, puros, de bom coração, ainda não corrompidos pela nossa sociedade de consumo, confiantes (ACRESCENTAR SLOGANS DO MOMENTO). Quero um belo país em estado primitivo! Um novo continente, um mundo a descobrir. (MÚSICA FEROZ: “YES, NÓS TEMOS BANANAS!”).

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