Augusto Boal

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As novas formas de sofrimento

07.05.2013

Jornal da Unicamp – Outubro de 2000

Páginas 8 e 9

CONGRESSO

Andréa Malavolta

As novas formas de sofrimento

A psicopatologia do século 21″ foi o tema de encontro na Unicamp
que por três dias envolveu médicos, artistas, escritores e jornalistas
na discussão da doença mental

O surgimento de novas formas de sofrimento no mundo moderno impõe desafios a psiquiatras, psicanalistas e psicólogos, que se ocupam cada vez mais em tentar entender, em suas atividades clínicas, a origem desse sentimento. Sofre-se por falta de emprego, por pressões políticas e, principalmente, pela ausência de projetos futuros. Busca-se soluções mágicas para a cura da dor, que causa incômodo e mal-estar na sociedade considerada normal . “O ser humano é o único dotado de um sofrimento intrínseco, decorrente do excesso, de algo que incomoda, perturba ou provoca insatisfação”, atesta Manoel Tosta Berlink, do Laboratório de Psicopatologia Fundamental da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

Ciência que concebe a doença mental como um excesso (a que se chama depathos), a Psicopatologia Fundamental não pretende se ocupar das doenças existentes, mas procura trabalhar com experiências vividas no dia-a-dia da atividade clínica. O sofrimento humano não é novidade, mas constitui-se em um dos principais desafios para a Psicopatologia Fundamental.

Por que os homens sofrem? A teoria psicanalítica de Freud já estudava a dor humana. Para Freud, o sofrimento poderia brotar de três fontes: do corpo, do mundo externo e das relações com os outros. Na sociedade contemporânea, o sofrimento incomoda. “Foi a própria psicanálise que propôs o fim do mal-estar”, lembra a psicanalista da PUC de São Paulo, Isabel Khan Marin. Segundo Isabel, entretanto, o sofrimento não acabou, mas adquiriu novas faces, fomentando a violência.

O psiquiatra Mário Pablo Fuks, do Instituto Sedes Sapientiae, acredita que as novas formas de sofrimento enfrentadas pela sociedade contemporânea são criadas em torno de modificações sociais e políticas às quais fomos submetidos. “Globalização, neoliberalismo, processos de ajuste econômico, tudo contribuiu para o surgimento dos novos deprimidos e angustiados no mundo pós-moderno”, teoriza. Na visão de Fuks, a sociedade de consumo controla o indivíduo. “Os shoppings são templos da nova religião que se impôs no mundo moderno e, nesse lugar, não há espaço para o sofrimento.”

“As pessoas padecem de uma falta de identidade e, em função disso, surgem as novas patologias”, completa o psiquiatra da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Joel Birman. Para Birman, as patologias surgem também na infância e na adolescência. “Na infância, porque há uma quebra da organização familiar. Na adolescência, porque, sem pontos de referência, os jovens não sabem para onde ir”, completa.

A arte, a paixão e o sofrimento – “Amor é fogo que arde sem se ver/é ferida que dói e não se sente/é um contentamento descontente/ é dor que desatina sem doer”. Da poesia lírica de Luís de Camões ou dos versos da música de Renato Russo, pode-se retirar a essência de um dos temas mais atuais para os estudos da psicologia e da psicanálise: o sofrimento. As manifestações da arte, como por exemplo a literatura, a música e o teatro, conseguem ser a mais completa expressão do significado exato do sofrer para os seres humanos. Para a professora de teoria literária da Universidade de São Paulo (USP), Adélia Bezerra de Menezes, sofrimento e paixão caminham lado a lado na literatura.

“Tradicionalmente, na literatura, amor e paixão são sinônimos de sofrimento. O ser humano, em geral, experimenta uma sensação eterna de incompletude. Somos todos doentes de incompletude”, afirma a professora. Além da sensação de incompletude, ela faz outras analogias entre paixão e sofrimento. “Nos textos literários, principalmente nas canções de amor da Idade Média, é comum observar a busca amorosa. Neste sentido, a palavra grega pathos pode significar o amor como doença”, ressalta. Adélia exemplifica no texto de Fedra a definição de amor que envolve o sofrimento: “Amor é tudo o que existe de mais doce e mais amargo”.

Um dos sentimentos mais extremados dos quais o ser humano é capaz. Esta é a definição do teatrólogo Augusto Boal para paixão. “Mas paixão não é sofrimento, é vida. A paixão é libertária. O obstáculo faz sofrer”, teoriza. Boal acredita que o sofrimento advém da necessidade quase mórbida que o ser humano tem de estrangular suas paixões.

A escritora Adélia Prado amplia as relações entre a arte, a paixão e o sofrimento, retirando da sabedoria popular o elo entre dor e beleza. “Quantas vezes não ouvimos a frase: ‘é bonito de doer!’. A beleza também provoca angústia e, muitas vezes, a arte nasce da dor”, analisa. O sofrimento na arte é ampliado pela escritora na dor que acompanha a criação artística. “O artista é sempre menor que sua obra e, muitas vezes, isso provoca o sofrimento. O artista quer ser Deus, mas é o servo e não o senhor da beleza”, afirma.

Para a psicanalista Maria Cristina Magalhães, a explicação para a ligação entre paixão e sofrimento está na origem da palavra. “Etmologicamente, paixão tem a mesma raiz que padecer. Por isso, a fronteira tão estreita entre o passional e o patológico”, justifica. Mesmo assim, acredita a professora Adélia Bezerra de Menezes, é possível vislumbrar prazer na paixão. E cita versos de Carlos Drummond de Andrade: “Amor também é cor, graça e sentido”.

Os deprimidos pós-modernos

Assim como mudaram as formas de sofrimento no mundo moderno, também surgiram novos casos de depressão e melancolia. Os deprimidos e melancólicos dos estudos de Freud, deixavam-se morrer. Hoje, os deprimidos, tomados por uma sensação de vazio, buscam ativamente a destruição, analisa a psicóloga Elisa Maria Ulhôa Cintra, da PUC-SP.

“Minha hipótese é que os melancólicos e deprimidos são os que possuem menor tolerância a estados de falta de satisfação”, afirma. Segundo a psicóloga, pessoas com experiências infantis dolorosas levam-nas a uma depreciação completa de si mesmas. “Para esses deprimidos, existe o ‘eu’ ideal e o ‘eu’ real, que se encontram muito distantes um do outro. “Assim, os prazeres possíveis não valem a pena porque não são suficientes para fechar a distância que separa os dois ‘eus’ “, argumenta.

Elisa acrescenta, ainda, que doenças orgânicas podem ser desencadeadas por estados depressivos e/ou melancólicos e cita o caso de uma paciente com insuficiência imunológica desencadeada pela depressão.

Se, para Freud, a morte representava o ponto final na diminuição do prazer de viver, para a psicóloga da PUC-SP, a morte pode ser procurada numa tentativa de reconstituição. “Se eu me mato, não será para me destruir, mas para me reconstituir.”

Professor da Unicamp e membro da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, Roosevelt Cassorla revela dados preocupantes sobre as tentativas de suicídio entre jovens. “Existem 150 tentativas de suicídio por ano para cada 100 mil habitantes entre jovens de 12 a 25 anos”, afirma.

As mulheres, segundo Cassorla, são as principais vítimas. “A perda, na realidade ou na fantasia, de um objeto idealizado, geralmente o namorado, provoca esse tipo de atitude”, afirma. Os homens, embora também estejam incluídos nas estatísticas, tentam menos o suicídio, pois reagem com mais agressividade às situações adversas.

Cassorla possui três teses para explicar o ato suicida. Na primeira, o psicanalista defende a idéia do não-ser. “Nesse caso, a morte levaria ao reencontro com os objetos perdidos melancolicamente.” A segunda idéia parte do pressuposto do “ser”, através da vingança. “É um ataque retaliatório àquele que causou a frustração.” No terceiro caso, o mais comum segundo Cassorla, a tentativa de suicídio significa um pedido desesperado de ajuda.

A farmacologia na depressão – Surgida na década de 80, uma nova geração de antidepressivos – entre eles o Prozac, conhecido como a pílula da felicidade – descortinou-se aos olhos de muitos especialistas como a solução mágica contra a depressão. Em dezembro de 1987, cinco anos após o lançamento do Prozac, mais da metade da população dos EUA era usuária do medicamento. A prática de receitar remédios nos tratamentos psiquiátricos, entretanto, é vista com cautela pela maioria dos psicanalistas.

Historicamente, a procura do bem-estar pela droga é antiga. No século 19, atingidos pelo “mal do século”, os homens buscaram no ópio a solução para a sua fragilidade diante das dificuldades da vida.

Para explicar a euforia causada na década de 80 pelo aparecimento dos antidepressivos, a psicanalista Urânia Tourinho Peres, do Colégio de Psicanálise da Bahia, cita o psiquiatra americano Mark Gold, que escreveu no livro As Boas Notícias sobre Depressão: “Você não poderia escolher melhor momento da história humana para se sentir infeliz.”

Urânia levanta a problemática do confronto entre a psicanálise e a psiquiatria biológica no tratamento das depressões. “Existe uma relação transferencial quando o psicanalista encaminha seu paciente ao psiquiatra para ser medicado. Não condeno o uso de remédios no tratamento da depressão, mas acho que a angústia do analista o leva a indicar a droga a seu paciente”, polemiza.

O drama do submarino russo

O drama do submarino russo Kursk. Homens enterrados vivos em um esquife de ferro: um sofrimento a que o mundo não assistiu, mas ouviu falar. Levantaram-se hipóteses, foram feitas suposições sobre o que estaria acontecendo a mais de 100 metros de profundidade. As horas terríveis vividas pelos reféns de um ônibus seqüestrado no bairro do Leblon, no Rio de Janeiro: o sofrimento que o Brasil acompanhou. Histórias dramáticas que, mostradas na tevê, nos jornais e nas revistas do Brasil e do mundo, revelam como a mídia lida com o sofrimento.

Para a psicanalista Miriam Chnaidermann, as imagens do sofrimento humano não deixam de ser invasoras na mídia, embora desempenhem um papel importante. “Quando exploram o sofrimento humano, os meios de comunicação tomam o lugar ocupado na Antigüidade pela tragédia grega”, afirma.

O caso do submarino Kursk, que afundou no mar de Barents – um pedaço do Ártico ao norte da Rússia – no dia 12 de agosto, a psicanalista define como a imagem do sofrimento que se produziu sobre o que não se viu e sobre o que cada um imaginou. “É uma imagem mimética ou o que se chama de lapso de imagem. A fronteira entre a realidade e a fantasia se confundem. É um momento em que se perde a organização do mundo”, explica.

Mesmo afirmando que a mídia leva ao leitor/telespectador um real invasivo, atroz e amedrontador, Miriam reconhece a importância de notícias como a do submarino Kursk para o imaginário humano. “O mundo em que vivemos precisa disso. Funciona como uma terapia. No sofrimento do outro, projetamos nossas fantasias”, comenta. Segundo a psicanalista, programas como o do Ratinho expõem o que, tradicionalmente, deveria ficar oculto, como o estranhamento familiar.

Os programas ou as notícias sensacionalistas invadem e conquistam, sim, o leitor e/ou o telespectador. “A questão a ser discutida é muito mais ampla e nos leva a refletir sobre o que dá prazer quando se vê o sofrimento do outro?”, questiona a psicanalista.

Para a ombudsman do jornal Folha de S. Paulo, Renata Lo Prete, o fato de o drama do submarino Kursk ter sido o “sofrimento que nós não vimos” explica por que a notícia ficou em evidência tanto tempo na mídia.

A jornalista Mônica Teixeira, da TV Cultura, concorda que a mídia privilegia histórias de sofrimento, mas considera inevitável tratar do assunto. “Hoje, a mídia é um aparelho disponível para isso”, resigna-se. Além disso, ela analisa a posição do jornalista frente às histórias que conta.

“Somos obrigados a relatar, a sangue quente, um fato de maneira objetiva. Muitas vezes, nos pedem que nos anulemos enquanto narradores”, polemiza. A proposta da jornalista é que o profissional de imprensa não abdique de sua posição de narrador da história. “Existe um fato objetivo, mas quem está contando é um ser social e histórico. Falta espaço para registrar também o sofrimento do profissional de imprensa”, completa.

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